Uma nova teoria para a catástrofe (Nick Cave)
The Red Hand Files: Uma resposta sombria (#121) — quase apocalíptica — para um coreano sobre dor pessoal, dor global, criação e vida feliz (“essa coisa extraordinária”)
(tradução: Sérgio de Souza)
Numa entrevista de 1997 em Los Angeles, você nos apresentou a sua “teoria da estimação”: sua criatividade só conseguia florescer em um estado de perda e saudade, e as catástrofes eram necessárias em sua vida.
Ao fim, isso foi o que teve mais ressonância para mim, você ter afirmado que não poderia extrair muita substância de uma vida contente. Ainda acredita nisso?
Um admirador sincero e dedicado, a quem uma vida satisfatória exige algum esforço. (HYUN, SEOUL, SOUTH KOREA)
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“Caro Hyun,
Um dos aspectos que me deram um autêntico panorama de humildade em “The Red Hand Files” é o vislumbre da vasta e variada extensão do sofrimento humano. O recebimento de carta após carta,dia após dia, cada vez mais durante a pandemia e seus recorrentes lockdowns , de pessoas que sofrem angústia devido a problemas muito sérios — problemas de saúde mental, solidão, falta de moradia, abuso físico e mental, perda de empregos, perda de entes queridos, perda de sonhos, perda de significado e perda de esperança. É um grande privilégio ler essas cartas, pois elas colocam nossas próprias lutas em perspectiva e são um lembrete de que, apesar de nossas diferenças, ninguém está imune ao sofrimento.
Então, quando li a citação de um jovem Nick Cave dizendo que precisa de catástrofes em sua vida para criar, essas palavras soam um pouco como a postura indulgente de um homem que ainda não descobrira o efeito devastador que o verdadeiro sofrimento pode ter em nossa capacidade de viver normalmente, o que diríamos da capacidade de criar? Não estou falando apenas sobre a dor pessoal, mas também sobre a dor global, à medida que o mundo está mergulhando cada vez mais nessa pandemia miserável. A pandemia está destruindo nossas vidas — mas também o está a questionável resposta dos lockdowns. As cartas que recebo por meio dos “Red Hand Files” são um testemunho do efeito devastador e amplamente ignorado dos lockdowns, não apenas na economia, mas na própria alma do mundo. Ao ler os dados — e digo isso com grande cautela — não podemos deixar de nos perguntar se os danos colaterais dos lockdowns, desse fechamento de nossas vidas, vão acabar compensando os benefícios.
Hyun, se você está levando uma vida satisfatória, meu conselho é aprender a viver dentro dela, examiná-la, saboreá-la e, acima de tudo, lembrar-se dela — essa coisa extraordinária, uma vida feliz — porque pode chegar um momento em que algo vai se apresentar, na forma de um infortúnio, uma transgressão, um abuso, um fracasso, uma humilhação, uma perda ou, na verdade, uma crise global onde sua vida vai se transformar, em um instante, do conforto fácil ao caos total. Isso está acontecendo ao nosso redor.
Por um lado, parte desse desespero que chega é a devastação rotineira da vida comum — o sofrimento está sempre conosco. Mesmo assim, oro para que, em última análise, possamos dar um passo além desta angústia extraordinária de nosso tempo para uma nova maneira, uma maneira diferente, um caminho melhor. Espero que tenhamos essa oportunidade.”
Com amor,
Nick.