Um romance é a coisa mais viva do mundo

Sergio de Souza
3 min readAug 25, 2022

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O Retrato de Dorian Gray na maçaneta da porta.

Uma professora do colégio dos meus filhos teve uma ideia genial. Criou uma moeda que só tem valor no âmbito escolar e só serve para comprar livros. Ela mesmo disponibiliza os livros, os alunos compram, ficam uma semana com os volumes para lê-los, e voltam na semana seguinte para vendê-los e comprar outros. Meu filho do meio chegou em casa com “O Retrato de Dorian Gray”, traduzido e adaptado por Clarice e a mais velha com “Orgulho e preconceito”, traduzido por Lúcio Cardoso. Wilde e Austen, Clarice e Lúcio Cardoso. Todos chegando à minha casa. Que pai não ficaria orgulhoso?

Como a mais velha é experiente na leitura, acompanhei o do meio, questionando e pedindo que me contasse o que ia lendo. Antes de ir me deitar, abria a porta do quarto e ficava fazendo as perguntas filosóficas que um pai chato e feliz por ver seu filho com um Dorian Gray nas mãos faz. Pela manhã, perguntava: “Dorian Gray era uma boa pessoa? Você acha que Lord Henry tentou corromper Dorian? Como foi o último capítulo?”

Ele me contava tudo, pacientemente. Vi os olhinhos brilharem especialmente quando narrou o fim do livro: “Papai, eu acho que ele morreu porque a alma dele estava no quadro…” Fiquei satisfeito, ele pegou o espírito do romance.

Gostaria de ter lido “O Retrato de Dorian Gray” novamente com ele, acompanhá-lo na jornada, para também eu entrar — trinta anos depois ! — no clima do livro e tentar fazer com que ele sentisse o “espanto literário”, aquele que é capaz até de tirar crianças e jovens diante das telas. Eu devo ser responsável por acender essa chama que uma vez acesa, raramente se apaga. Tenho que acendê-la e zelar por ela. Por várias vezes passei pelo quarto do menino e senti o impulso de pegar o livro, devorá-lo de uma sentada e discutir tudo com ele. Em meio a tantos afazeres e obedecendo ao valioso conselho de Natalia Ginzburg — dê aos seus filhos “o livre silêncio do espaço” — , ele acabou lendo o livro sozinho . Aliás, quem não leu um livro sozinho, não o leu de verdade. Não deixei de tentar instigá-lo com minhas perguntas, mas, ao fim e ao cabo, foi tudo entre ele, Lord Henry, Dorian Gray, Basil Hallward, Clarice e Oscar Wilde.

Quando terminou a leitura, expliquei-lhe que ele havia lido uma adaptação, que o romance era mais extenso e que um dia ele teria a oportunidade de lê-lo. E eu fiquei mesmo na vontade de reler Wilde.

Mas eis que, ao chegar ao trabalho, vejo pendurado na maçaneta da porta de entrada um exemplar de “O Retrato de Dorian Gray”. Como trabalho em um Instituto Cultural, creio que alguém — e creio na providência — colocou aquele volume como uma doação para o Instituto. Ou simplesmente alguém que sabe do meu amor pelos livros me deixou de presente.

Eu, ao contrário de Ivan Lessa, acho que um romance é a coisa mais viva do mundo. Claro: um romance não é mais vivo do que uma pessoa. Mas um romance é o retrato da alma de uma ou de várias pessoas. Ou de duas almas vivendo no corpo de uma só, como é o caso de Raskolnikov. Se Deus deu ao homem a possibilidade de, pela sua fisiologia, reproduzir um corpo humano, também deu ao homem a possibilidade de “criar” uma alma — ainda que uma alma imaginária, uma maravilhosa alma imaginária como a de Hamlet, por exemplo — ao dotá-lo da imaginação e do talento literário.

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Sergio de Souza
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Written by Sergio de Souza

Trabalho com produção de conteúdo textual. Brinco de traduzir The Red Hand Files.

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