Um romance para a era da necropolítica

Sergio de Souza
2 min readDec 10, 2020

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“Enterre seus mortos”, de Ana Paula Maia está entre as melhores leituras que fiz em 2020

Ana Paula Maia construiu uma quase distopia pré-covidiana (o romance é de 2018). Edgar Wilson, se espera mais um pouquinho, poderia estar catando não os corpos dos animais, mas das vítimas das duas grandes ondas pandêmicas de 2020 (que não irão poupar 2021). Edgar Wilson é um herói, porque a morte, embora lhe seja familiar e possa lhe parecer parte integrante da simples tarefa de um operador diário, corrói seu espírito. Os olhos vivos dos aninais mortos lhe falam. E a consciência ouve. Nada nem ninguém pode calar essa voz.

Qual Tobit contemporâneo (procure o livro de Tobias na Bíblia e verá a inevitável referência), Edgar Wilson, cuja consciência não deixa passar incólume nem a cotidiana morte animal, fica tão perturbado diante dos corpos humanos insepultos, que enterrá-los configura, não só mais um corriqueiro serviço, mas uma tarefa com estigma vocacional. Com ares de faroeste de horror metafísico, “Enterre seus mortos”, se pode deixar uma lição é: a morte nunca é banal.

Edgar Wilson é um herói para o nosso tempo porque para ele nunca será banal ver corpos empilhados (como parece ser para alguns defensores da “imunidade de rebanho). A morte é inevitável, mas sua inevitabilidade não pode jamais torná-la banal. O pesado fundo da consciência de Edgar Wilson que diga.

Ana Paula Maia

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Sergio de Souza
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Written by Sergio de Souza

Trabalho com produção de conteúdo textual. Brinco de traduzir The Red Hand Files.

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