Trabalhar com devoção
Uma das possíveis explicações para o exílio voluntário de J.D. Salinger após a publicação daquilo que se convencionou chamar de sua “obra completa” (Um romance, O apanhador no campo de centeio, de 1951; uma coletânea de contos, Nove histórias, de 1953; quatro novelas, Franny e Zooey, de 1961 e Erguei bem alto a viga, carpinteiros & Seymour: Uma introdução, de 1963) é a seguinte.
Salinger gostava muito de um texto clássico da tradição hindu, o Bhagavad Gita, que é um trecho, um conto, se assim podemos dizer, que faz parte do Mahabharata, que é um épico gigantesco. O conto descreve uma batalha, diante da qual o príncipe Arjuna está tomado por dúvidas — os meus inimigos são meus semelhantes, são homens como eu, deveria eu matá-los ? Ele passa por uma espécie de crise existencial logo antes de entrar no campo de batalha. Junto com Arjuna está Krishna, uma figura suprema, uma divindade para os hindus, que o acompanha e aconselha. Em certo momento, Krishna tenta iluminar a mente de Arjuna com um longo discurso, o chamado Canto do Abençoado (Bhagavad Gita), cuja ideia básica é o que veio depois a se chamar karma yoga, conceito do qual Salinger era um entusiasta. Essa ideia, repetidamente exposta no texto, é lapidarmente resumida na frase: você só tem direito ao trabalho, você não tem direito aos frutos do trabalho. Ou seja: trabalhe! Faça! Fique quieto, faça sua parte e faça direito. Faça com excelência, independente do resultado. Alcance você sucesso ou não. Não importam os frutos. Os frutos não devem te mover. Você simplesmente tem que fazer o seu trabalho, e fazê-lo bem. Com afinco e concentração. Como se fosse um ritual de adoração. Pegar uma caneta e escrever como se fosse uma ritual de adoração; varrer a casa do mesmo jeito, e assim por diante. Trabalhe com devoção.
O importante é escrever o livro. Publicá-lo não é necessariamente relevante.
Salinger publicou seu último conto, Hapworth 16, 1924, na revista The New Yorker em 19 de junho de 1965. Depois disso, sumiu da vida pública, escondendo-se no meio do mato. Nunca mais deu uma entrevista, falou ou fez aparições públicas. Há indícios de que ele continuou escrevendo e produzindo até sua morte, em 27 de janeiro de 2010. Escrevendo com excelência, mas não publicando. Trabalhando, mas não se preocupando com os frutos.
Se for assim, parece um belo exemplo.
Dom Bernardo Bonowitz, ex-abade de do Mosteiro Trapista de Nossa Senhora do Novo Mundo, em Campo do Tenente, Paraná, disse algo curioso em um sermão de Domingo de Ramos:
“Nós cristãos somos os únicos a acreditar que a salvação é fruto de um determinado ato de Deus. Para as religiões orientais, a salvação é uma descoberta dos ritmos e das realidades e processo de conformação com eles, um entrar em sintonia. Nossa fé é que Deus salvou o mundo para sempre pelo sacrifício do seu filho unigênito na cruz. É essa salvação que contemplamos na liturgia de hoje e nas liturgias da Semana Santa.”
Me parece que o que Salinger percebeu no karma yoga foi justamente isso — um meio de se salvar entrando em sintonia com uma sabedoria descoberta pela observação da natureza humana e da organização da realidade. Salinger não se relaciona com Krishna, mas obedece à ideia, que se traduz numa prática: você só tem direito ao trabalho, você não tem direito aos frutos do trabalho. Trabalhe com devoção.
Nosso Senhor, no evangelho da liturgia de hoje, nos transmite uma visão bem específica do serviço e do trabalho com devoção. “Se alguém me quer servir, siga-me, e onde eu estou estará também o meu servo. Se alguém me serve, meu Pai o honrará”(Jo 12,26). Ou seja, para me servir é necessário me seguir. Aqui já entra a dimensão pessoal. Depois: onde estou, estará também o meu servo. Aqui entra o que Dom Bernardo chamou de “ato de Deus”. O Verbo se encarnou e nos salvou. Cabe-nos servir e trabalhar para ele, mas com ele. Aqui entra também o que se chama tecnicamente de graça atual e graça santificante. Fazer tudo como se fosse um ato de adoração, mas sabendo que, ao fim e ao cabo, a obra é de Deus. O acabamento é da graça.
Não é simplesmente uma técnica, uma prática ou uma disciplina. É um ato de Deus. Não é algo que o homem possa fazer por si mesmo. É uma adesão, uma colaboração. Embora também inclua a descoberta dos ritmos e das realidades da natureza e do universo, porque é o próprio Verbo que os sustenta no ser. E conquanto não se deva trabalhar e servir com vistas aos frutos, pois o amor é incondicional, Nosso Senhor fala de uma recompensa, que não é um pagamento, mas um ato livre do amor misericordioso de Deus: “Se alguém me serve, meu Pai o honrará.”
Salinger sumiu e nunca mais foi visto. Deixou uma obra. E esperamos que os responsáveis pelo espólio se dediquem a publicar logo todo o suposto material que ele escreveu durante todos os anos de anonimato.
A nossa obra é a obra de Cristo. Foi Ele quem fez e faz tudo. Também nós devemos sumir. Sumir, escondidos em suas chagas. Ele colherá os frutos. A nós cabe trabalhar com devoção e esperar em sua bondade.