Tenho péssima memória
Tenho péssima memória. Se escritor, seria memorialista, para tentar reconstruir o que perco diariamente. Um pouco como o protagonista do filme “Amnésia”, que tatuava informações em seu próprio corpo, vou também registrando impressões em corpos como cadernos, versos de cupons fiscais, aplicativos de celular, e-mails que envio de sergiodesouza@qualquer coisa.com para sergiodesouza@qualquer coisa.com, mesmo não sendo escritor.
Não sei o que é ser escritor. Se ser escritor é ganhar a vida escrevendo ou escrever para publicar, não o sou. Se é escrever todo dia por uma necessidade básica — de autoconhecimento, terapêutica, ou de salvar os dias em esperança — sou escritor.
No último dia 3, registrei um sonho que tive com meu pai. Foi apenas o segundo sonho que tive com ele desde que se foi, há cinco anos. No primeiro sonho, ele aparecia mostrando-me longos cortes na parte interior dos braços, com um olhar suplicante. Rezei, pois entendi que poderia ser um pedido de ajuda. Se acredito em comunicação onírica com os mortos? Acho que não, mas isso pouco importa, isso aqui é só elaboração (exercício literário). Mas rezei porque é tudo o que posso fazer por meu pai se sua alma estiver no purgatório.
Meus sonhos também desvanecem nas nuvens da memória, deixando no coração uma essência que guarda a impressão e o significado profundo da experiência própria de sonhar. A imagem dos cortes nos braços e o olhar suplicante permaneceram na memória afetiva sem necessidade de registro escrito. Tratando-se de meus sonhos, o coração é um recipiente não-analítico da memória: um baú de afetos. A estrutura do sonho passa, fica a essência afetiva, como um símbolo interior.
Já neste sonho do dia 3 meu pai aparece tentando consolar duas primas que passaram por um grande sofrimento, e, na ânsia de ajudá-las, já muito idoso, cansado e inarticulado, não consegue se expressar e eu preciso levantar para acalmá-lo com um abraço. Esta foi como que a última “cena” do sonho, e a única parte da qual me lembro. Mentira: lembro-me também de que eu já estava no segundo casamento e estava me separando de novo. Discutia com minha segunda mulher, tentando me recordar se aquela sensação de separação era outra ou a mesma da primeira vez. Registrei com detalhes este segundo sonho — só a cena do pai — assim que acordei, atordoado por sentir quase fisicamente a sensação de um abraço em alguém tão querido que partira já há alguns anos. Lembrei-me de que meu irmão havia dito, assim que papai falecera, de que tudo o que gostaria de pedir a Deus na vida eram mais dez minutinhos com papai. No sonho, não tive dez minutos nem um instante, mas a rememoração de uma presença.
No entanto, essa a impressão forte e afetiva, que me fez chorar como um menino à beira de uma cama, foi desaparecendo lentamente da tela da memória, dentro de poucos dias. Hoje ainda é 7 de janeiro, e se consulto minha mente, a imagem do primeiro sonho me parece mais nítida do que a do segundo, muito embora o sentimento do segundo esteja mais vivo que o do primeiro. Enquanto o primeiro se instala na memória afetiva, o segundo parece querer ficar no futuro amarelecido das páginas de um caderno.
Não sei se vai ser assim daqui para frente. O que registro, some dos afetos memoriais; o que não escrevo, deixa sua marca viva na lembrança.