Patti Smith: uma introdução
Ela é cantora, poeta, performer, escritora e fotógrafa. Ganhou proeminência do mundo do rock, mas é uma roqueira improvável, que usa a música como veículo para a poesia, a literatura e a arte. É uma escritora que canta. Recorrentemente chamada de alta sacerdotisa do punk, não tem religião, mas é religiosa. Patti Smith é uma mulher multifacetada.
Para falar de religião, um de seus temas centrais, Patti começou seu álbum mais importante, o icônico “Horses” (1975), com uma frase que é uma afronta ao Criador: “Jesus morreu pelos pecados de outras pessoas, não pelos meus”. E nos palcos chegava a celebrar uma espécie de ritual dionisíaco no qual dançava e lutava — como Jacó — contra Deus, durante a música “Ain’t It Strange”, de seu segundo álbum “Radio Etiópia”, que tinha o verso, , “Come on, God / Make a Move”, um desafio a Deus). Só que Jacó venceu e Patti perdeu. Num desses embates, a cantora caiu do palco, quebrou uma vértebra e teve que passar por um período de reclusão para se recuperar. Quando retornou às apresentações com um disco novo, “Easter” (“Páscoa”) que marcava sua ressurreição, Patti decidiu não mais cantar aqueles versos blasfemos, substituindo-os por “Jesus morreu pelos pecados de outras pessoas/ Por que não pelos meus?”. Dali para frente, adotaria uma atitude mais serena e reverente em relação à religião e seus símbolos.
Entre as atitudes que destoam da vida de uma rockstar típica está o fato de ter abandonado o showbizz para se dedicar ao casamento e cuidar de seus filhos. Depois da quadrilogia de álbuns clássicos — que termina com “Wave” — e de seu último show antes do exílio, Patti Smith retirou-se da cena pública por quase uma década. Cuidar da família e dos filhos seria sua forma de arte. Patti não precisava mais de tudo o que envolvia o rock´n´roll style of life (aliás, parece nunca ter precisado): “Não tenho o mesmo fascínio com isto. Quando eu era mais jovem eu realmente me divertia fazendo coisas, gostava de atenção. Mas neste ponto da minha vida eu acho isto um pouco frívolo… Você entenderia, se fosse mãe…”.
Mesmo após seu retorno, com o magnífico “Dream of life”, de 1988, no qual a intensidade juvenil dá lugar a uma serenidade mais contemplativa, Patti se recusava a voltar ao jogo midiático: “Meu mundo não gira em torno dessas coisas…”
Depois de mais um hiato, retoma a carreira artística e lança álbuns memoráveis nos anos 90 e adentra os anos 2000 como um dos grandes expoentes artísticos do mundo pop. Seu último disco é “Banga”, de 2012.
Seu legado musical é ilimitado. Uma geração inteira de gênios lhe pagou tributo. Michael Stipe e o R.E.M; Bono, The Edge e o U2; Morrissey e Johnny Marr se conheceram num show de Patti e durante toda sua carreira a reverenciam como uma influência fundamental.
Patti é poeta e sempre publicou, desde 1972, e é dona de uma extensa bibliografia, mas foi sua prosa — uma mistura de memórias, sonhos e reflexões — que atingiu o grande público de forma impactante. A partir de 2010, quando lança “Just Kids”(“Só Garotos”), a narrativa de sua relação com o fotógrafo Robert Mapplethorpe, que se tornou uma espécie de pequeno clássico contemporâneo, todo mundo passou a prestar atenção na Patti Smith escritora e a esperar seus livros com ansiedade sempre renovada. “Linha M”, “O Ano do Macaco” e “Devoção”, lançados após “Apenas Garotos”, foram celebrados não só pelo mundo pop, mas pela cena literária e Patti passou a andar pelo mundo dando palestras sobre seus livros, lendo poemas e falando de literatura. Tornou-se uma persona literária.
Com o advento das redes sociais, Patti pôde fazer, já em sua vida madura, o que mais parece gostar: encontrar pessoas e ter contato diário com seu público. Sua conta no Instagram, que tem mais de um milhão de seguidores, entre os quais muitos artistas pop consagrados, é um bálsamo para quem ama literatura e arte. Todos os dias ela nos presenteia com suas fotos, sua poesia e os relatos de suas andanças ao redor do mundo.
Patti Smith é uma pessoa tão, mas tão incrível, que mesmo tímida diante da câmera do celular e meio sem jeito com a tecnologia, grava um vídeo caseiro para a sua newsletter mostrando sua — simplérrima — casa de praia, falando do livro que está lendo e fica muito melhor do que todos os youtubers do mundo. Parece alguém que transborda uma sabedoria que aprendeu com a vida e com outros sábios. Sem ar professoral, pose de mestra ou pretensão de explicar os tempos, apenas sendo ela mesma e colocando-se toda no que faz. Até seus erros — como a letra esquecida da canção “A Hard Rain’s A-Gonna Fall na entrega do Nobel de Bob Dylan (que não foi receber o prêmio, mas mandou Patti em seu lugar) — destilam beleza.
Ela é tão doce, tão sincera, autêntica, livre e espontânea, que uma simples aparição sua num vídeo no meio de uma tarde pode salvar o seu dia.