Patti Smith — O Sereno Retorno da Musa Incendiária — Revista Bizz (1988)
Entrevista dada ao Melody Maker em 1988, reproduzida pela Bizz nº 44
“Numa tépida noite de verão em Florença, em 79, Patti Smith fez seu último show. Desfilou para o público hits como “Horses” e “Gloria” e saiu serenamente para o exílio que iria durar nove anos. Hoje, casada e com dois filhos, ela resolveu sair da toca e lançar Dream of Life. Aqui, em sua primeira entrevista na década de 80, a Chris Roberts, do Melody Maker, ela fala da ausência e do retorno.”
“Ameaça e prece, como disse Jean Genet, use ameaça e prece…
‘Hmmm, eu gosto disso, ainda gosto…’
No Japão, em 77, Patti Smith disse: ‘Todos dizem que tudo acabou… a arte acabou, o rock morreu, Deus morreu. Fodam-se! Esta é a minha vez na vida. Estou aqui agora e quero que o agora seja o melhor tempo de todos. Esta é a minha Era Dourada… Se cada geração percebesse que o tempo de grandeza é agora mesmo, quando estão vivas…’
E em 88? A arte está viva? O rock está vivo?
‘Bom, eu estou viva, ainda. E tenho dois filhos no mundo. Obviamente acredito tanto no poder do coletivo, e , sabe, sempre vai haver alguém. A coisa está viva porque há um bebê que daqui a quinze anos vai fazer ficar viva. Na arte, quem manda é o indivíduo.’
Parece que você hoje em dia prefere a música clássica.
‘Um pouco. Às vezes prefiro nada de música. Pode ser John Coltrane. Pode ser um desejo enorme de ouvir ‘Purple Haze’ ou de ouvir o silêncio. As ondas estourando. O mar.’
‘O que eu sinto sobre o rock… Eu vi ele nascer, nasci no final dos anos 40 e vi os 50, vi Little Richard, vi a chegada de tudo, todas as mudanças. Quando eu era jovem, no começo dos anos 70, eu me preocupava com ele, pensava que ia desaparecer ou se dissolver, ou se transformar em um brilho ou algo assim. Mas sobreviveu. Com ou sem mim, vai sobreviver também. Em todos os campos, sempre durge alguém para quebrar tudo.’
‘Não tenho o mesmo fascínio com isto. Quando eu era mais jovem eu realmente me divertia fazendo coisas, gostava de atenção. Mas neste ponto da minha vida eu acho isto um pouco frívolo… Você entenderia, se fosse mãe…’
Leitores: Eu não sou mãe.
‘Tudo pode ter valor se for usado corretamente, mas a maior parte do tempo trata-se de um montão de indulgências.’
Então por que você voltou ao jogo vicioso?
Estou fazendo algumas coisas que considero que valem a pena, mas não me considero de volta ao ‘jogo’. São umas poucas horas, e acabou. Não estou interessada mesmo no jogo da carreira. Eu e Fred temos sorte de ter uma saída para nosso trabalho, mas se não der certo temos outras coisas para fazer. Meu mundo não gira em torno dessa coisas…’
Você vê seus discos antigos com nostalgia? Você gosta deles? Você gosta de você mais jovem?
‘Uma parte eu gosto, uma parte vejo com nostalgia, mas não me sento para ouvi-los. Coloquei neles os melhores sentimentos e por isto fecho com eles, tenho orgulho deles. Não quero dizer que os ouça. Gosto de Gosth Dance.’
Chegamos a Nova York sabendo que temnos a chance de conseguir a primeira entrevista com Patti Smith na década. Talvez ela fale com Los Angeles Times. Ela não quis falar com Time, Life e Rolling Stone. E todo o resto. Com certeza, não está correndo atrás de atenção.
’Em uma época dei montões de entrevistas e não quero mais entrar nessa’, ela diz. Patti Smith tem 42 anos, é casada com Fred Sonic Smith (do grupo MC5) e tem dois filhos, Jackson e Jesse. Eles vivem em Detroit.”
“Patti Smith foi uma poetisa andrógina revolucionária que se tornou a mais autêntica sacerdotisa do rock dos anos 70. Ela ousou onde outros vacilaram. Seu primeiro LP, Horses, ainda não foi igualado em verve, sacadas, melancolia e uma exuberância irrequieta. É melhor que o primeiro LP do Velvet Underground. É melhor que qualquer coisa. ‘Land’ é a faixa mais excitante que já foi gravada. ‘Gloria’ e ‘Free Money’, as mais edificantemente românticas;’Breack It Up’, a mais torturada.
E há ainda ‘Let’s Get It On’, de Marvin Gaye, e ‘Horses’, de Patti Smith, e o que ela escreveu é o estado da arte até hoje. Sem Patti Smith, a mulher no rock seria ainda uma dançarina go-go e haveria um imenso abismo entre o agressivo e o afetado. O punk não teria sido desarticulado. As guitarras ainda serviriam para aprender acordes. Cantar seria emitir as notas ‘corretas’.
Uma Mona Lisa, uma Joana D’Arc, ela foi a mais alucinatória e inspiradora performer (‘Nós sabemos como dar nossas vidas todos os dias’, Rimbaud). Seus discos subsequentes, Radio Ethiopia, Easter (antes do qual ela quebrou o pescoço caindo do palco e escreveu o livro Babel) e Wave ficaram mais fortes e mais amplos, mais intensos e mais apropriadamente à esquerda com o passar dos anos. Depois de Wave ela desapareceu, com Frederick dançando descalço. Depois de nove anos ela ressurge com Dream of Life, um lindo LP que substitui a velha e irrepreensível metralhadora por uma serenidade transcendente.
Serenidade?
‘Eu não sei o que esta palavra quer dizer…’
Dream of Life é um novo rio no mapa, um lago, um redemoinho latente. Temos muita sorte. O profano se tornou sagrado.
Na Hit Factory, estúdio onde foi gravada a maior parte do LP, Patti concordou em filmar uma entrevista para sua gravadora, a Arista. A gravação circulará pelo país, e assim ela poderá ficar em casa com a família. Se der tudo certo, conseguiremos nossa entrevista antes que ela saia. Não é muito garantido. Especialmente quando ficamos sabendo que seu velho amigo, o conhecido fotógrafo Robert Mapplethorpe, está morrendo de Aids em um hospital. Ela acabou de chegar de uma visita e está, portanto, compreensivelmente preocupada.
Patti Smith, uma rara lenda, é uma das poucas pessoas no mundo com quem nunca conversaria o bastante. Ela irradia uma beleza única, uma beleza da mente e da vontade. E ela uma vez escreveu: ‘As trombetas. O som incansável. Olhar pra você. Eu quero cortar todo o meu cabelo e tomar uma droga e outra droga. Amor. Monocaína. Descasque todas as minhas camadas, pele após pele, de película transluzente’.
Patti grava sua entrevista para a televisão. TV, Patti, é uma coisa curiosa…
‘Eu nunca assistia. Agora assisto. Não continuamente. É a história do ovo e da galinha. Ela está mudando o mundo e está constantemente sendo mudada por causa do mundo. Às vezes tudo se parece com um gigantesco music vídeo. Eu gosto de ver as notícias e gosto quando passam velhos filmes de artes marciais rituais. Kung Fu. Não gosto de coisas da Máfia. E amo os filmes de Sherlock Holmes. Qualquer um deles. Por isso tem valor como entretenimento. Eu sei que ela tem milhões de coisas terríveis…’
A TV avisa que estão rodando. O que você fez nestes últimos nove anos?
‘Nove anos em 90 segundos?’
Claro. Dez segundos para cada um.
‘Bom, para ser bem rápida, foram nove anos muito prolíficos. Fred e eu nos casamos, fizemos muitas viagens e tivemos aventuras interessantes, fomos para a Guiana Francesa, tivemos nosso filho Jackson. Ambos perseguimos nossos estudos pessoais. Escrevemos música juntos; é uma coisa que ele sempre faz. E eu escrevi bastante, quatro ou cinco livros, sobre a Guiana Francesa, o mar, toda espécie de coisas. Foram bons nove anos, cheios de construção e reflexão.’ “
“Que levaram a Dream of Life?
‘Suponho que se possa dizer isto. Levaram a uma porção de coisas.’
Dream of Life é tão gratificante para você quanto os discos anteriores? Quanto? Mais? Menos?
‘É um tipo diferente de satisfação. Se uma pessoa coloca um trabalho num plano como o nosso, bombardeado por nove milhões de toneladas de trabalho, então deve ficar pelo menos orgulhosa dele. A diferença deste LP é a alegria de tê-lo feito como uma coisa como uma coisa una com meu marido e de ter nossos pensamentos fundidos em um. Isto para mim é especialmente maravilhoso. Estou feliz.’
Como você consegue combinar ser uma dona de casa e uma artista?
‘Acredito que um artista é um artista, está no sangue e não se pode impedir. Você simplesmente é. A mesma coisa acontece quando com uma mãe. Eu não tenho de combiná-las, eu sou. É minha busca. Se eu estou cuidando das crianças, tenho ainda meus pensamentos, não?
Não se perde a intensidade?
‘No meu caso, não. Mas só posso falar por mim. Se algo se perde em intensidade de forma superficial, certamente há um ganho em clareza. É uma troca justa.’
A música é um meio de expressão satisfatório pra você?
‘Sim, se você consegue comunicar o que pretende. A única coisa insatisfatória é um meu trabalho. Se você fizer um bom trabalho, pode ser um livro, um desenho, pode ser alguma coisa que ninguém nunca vá ver, um sonho, uma revelação privada…’
E importa se ninguém o vê?
‘É importante, mas não é tudo. Acho que todo artista deseja ver a fruição de seu trabalho, gosta de vê-lo exposto. Não há como evitar isto.’
O senhor e a senhora Smith foram recentemente a um concerto de Beethoven com a Detroit Symphony Orchestra. Quando era criança, Patti sonhava em ser cantora de ópera, antes do sonho de ser bombeira e enfermeira. ‘Meu pai me comprou uns discos de Puccini quando tive escarlatina.’ Ela ama Maria Callas e Art Pepper. Os únicos discos pop dos quais ela consegue se lembrar são ‘Man in the Mirror’ (Michael Jackson), ‘Into the Groove’ (Madona) e ‘Time After Time (Cyndi Lauper). Destes ela gosta.
E o que há por trás do novo LP?
‘Fred e eu temos uma tapeçaria bem definida de ideologia pessoal. Ao ter um filho eu certamente ganhei outra fonte de inspiração, mas o que nós discutimos é o sofrimento, o meio ambiente, Afegasnistão, Romênia — para onde você olhar vai ver corações partidos. É por isto que escrevemos uma música como ‘People Have the Power’. É maravilhoso que estejamos tomados por uma chama. Não podemos desistir, não podemos nos esconder em uma concha e começar a ver o noticiário como se estivéssemos vendo uma novela. Já foram escritas muitas outras músicas como esta, e muitas outras serão escritas ainda.’
Das outras novas músicas, ‘Where Duty Callas’ é uma canção de lamentação pró-humanitária — ‘dá quase pra ver a mulher de negro chorando por seus filhos’; ‘The Jackson Song’ é uma cantiga de ninar e ‘Up There Down There’ foi gravada no dia em que Andy Warhol morreu.
‘Eu liguei para Mapplethorpe para falar sobre umas fotos e ele me disse; ‘Andy Warhol morreu’. Era algo para se pensar. Para mim Andy era Nova York, era um espectro sobre a cidade como o Empire State Building, uma parte dela. Ele não era meu artista favorito, mas foi tão triste vê-lo partir… Na verdade, quando eu penso em Andy penso em seu cabelo.’
‘ ‘Dream of Life’ é na verdade tão abstrata quanto pessoal. Eu penso em meu pai falando comigo, e Jesus também disse ‘eu sempre estou com vocês…’
Quão importante a religião é para você?
‘Eu não me alinho como membro de qualquer religião organizada. Eu acho que o aspecto espiritual do homem é muito importante e sempre fui fascinada pelos artefatos religiosos que o homem desenvolveu. Eu não chamaria de religião as coisas que penso. São áreas de estudo… acho que há uma área de possibilidade de ser que o homem chama de religião. O homem precisa dos seus deuses. E deve lhes render homenagens.’
Na capa de Wave, entre os pombos, você cita Rilke: ‘Amar o outro; esta é para o ser humano talvez a mais difícil de nossas tarefas; o último teste e prova, o trabalho para o qual todos os outros não são senão preparação…’ Isto parece profético. Você o seguiu.
‘É. Na época eu não sabia o que iria acontecer, mas isto indica que eu comprometi meu coração dentro de mim antes… Foi uma coisa muito boa de se fazer. Eu sei.’
Você ainda é apaixonada por Rimbaud e Baudelaire?
‘Eu exauri aquele período, mas ainda, de vez em quando, volto a Rimbaud, e as Iluminações são ainda tão belas…’
Eu penso numa frase de Rimbaud: ‘Apenas com uma candente paciência conquistaremos a cidade que dará luz, justiça e dignidade a todos os homens’. Você está nessa?
‘Hum… É muito bom.’
Quer dizer que agora é paciência em oposição aos gritos radicais?
‘São ambos necessários. Espero que não se passe a vida toda com só um dos dois. Há horas de gritos radicais e há horas em que a paciência é virtude.’ “