Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder
Uma meditação de finados
Meu dia de finados será marcado pelo primeiro parágrafo do romance A morte do pai, de Karl Ove Knausgård. Foi uma coincidência lê-lo nesse momento. Estava na fila, depois do delicioso Minha amiga genial, de Elena Ferrante. É um choque ler Knausgård depois de Ferrante: apaga-se a luz, mergulha-se numa treva quase vertiginosa. Não adianta explicar muito:
“Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para. Cedo ou tarde, mais dia, menos dia, cessa aquele movimento repetitivo e involuntário, e o sangue começa a escorrer para o ponto mais inferior do corpo, onde se acumula numa pequena poça, visível do exterior como uma área escura e flácida numa pele cada vez mais pálida, tudo isso enquanto a temperatura cai, as juntas enrijecem e as entranhas se esvaem. Essas transformações das primeiras horas se dão lentamente e com tal constância que há um quê de ritualístico nelas, como se a vida capitulasse diante de regras determinadas, um tipo de gentlemen’s agreement que os representantes da morte respeitam enquanto aguardam a vida se retirar de cena para então invadirem o novo território. Por outro lado, é um processo inexorável. Bactérias, um exército delas, começam a se alastrar pelo interior do corpo sem que nada possa detê-las. Houvessem tentado apenas algumas horas antes, e teriam enfrentado uma resistência cerrada, mas agora tudo em volta está calmo, e elas avançam pelas profundezas escuras e úmidas. Chegam aos canais de Havers, às glândulas de Lieberkühn, às ilhotas de Langerhans. Chegam à cápsula de Bowman nos rins, à coluna de Clarke na medula, à substância escura no mesencéfalo. E chegam ao coração. Ele continua intacto, mas se recusa a pulsar, atividade para a qual toda a sua estrutura foi construída. É um cenário desolador e estranho, como uma fábrica que trabalhadores tivessem sido obrigados a evacuar às pressas, os veículos parados a projetar a luz amarela dos faróis na escuridão da floresta, os galpões abandonados, os vagões carregados sobre os trilhos, um atrás do outro, estacionados na encosta da montanha.”
Será que é só isso? — já enfrentei essa tentação quando sepultei meu pai e vi seu corpo depositado naquele túmulo escuro e frio. — Será que a alma é uma ilusão?
Para o materialista, como Knausgård, parece que sim. Ele está incapaz de olhar além. Para mim, que fui instigado desde cedo a crer e nasci e cresci numa casa objetiva e subjetivamente católica, não foi tão difícil voltar para o meu mundo depois de abandonar a paisagem de lápides do campo-santo. Foi doloroso, mas um processo quase espontâneo. Minha experiência elementar — essa exigência de felicidade, de verdade, de justiça, etc., com a qual, segundo Luigi Giussani, nascemos — , que desde cedo fazia borbulhar dentro de mim a vida examinada, traduzida em perguntas do tipo Quem sou eu? De onde venho e para onde vou? Por que o mal existe? O que existirá depois desta vida?, me levou a olhar de novo para o alto, para Cristo, para o céu.
E àqueles que creem no mundo do espírito pode parecer que esse pó no qual o corpo se transforma após a dissolução de toda a organicidade, como Knausgård descreveu terrivelmente, não tenha mais importância alguma. Mas para quem crê também em Cristo, esse pó, espalhado agora pelo mundo, um dia irá se reunir e reencontrar-se com o espírito, naquilo que se chama ressurreição da carne. Não há essa separação radical entre corpo e espírito que a morte pode nos fazer crer: Cristo se encarnou. E depois de sua morte apareceu com o corpo ressuscitado, deixou-se tocar em suas chagas, caminhou, conviveu, ceou com seus discípulos — e ascendeu. Cristo tem, para sempre, um corpo no céu. Nós, junto com ele, também o teremos. É esta a nossa esperança.
Portanto, se o materialista não consegue olhar para a morte além de seu aspecto meramente orgânico, o crente passa pelo fisiológico e sente uma reivindicação no fundo do ser: tem de haver algo além. E em seu coração ouve, ainda discreta, a voz do filho de Deus.
Este texto não é uma crítica teológico-moralista ao autor, que mal comecei a ler, e me parece maravilhoso. Tenho convicção de que os cristãos devem frequentar o átrio dos gentios para conversar com os não crentes. Como quase não encontro não crentes em meu dia a dia, gosto de conversar com Knausgård — e Beckett, e Camus, e Cony… Neste sentido, são luminosas as palavras de Eduardo Lourenço: “Desposar o espírito do tempo sem a ele ceder”. Todos os tempos são tempos de não crentes. E eles nos ajudam com nosso memento-mori. Tanto o diário, quanto o de finados.