Os subúrbios de Win Butler

Sergio de Souza
3 min readFeb 17, 2020

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Quando meu — já não tão — -pequeno João nasceu, eu estava ouvindo “The Suburbs” do Arcade Fire, indo e vindo de bicicleta do hospital para casa, com fones de ouvido. Até, numas dessas, esquecer a bicicleta no estacionamento do hospital e ser roubado. Bye, bye, bike. Só não senti o impacto da perda, eu que tanto amo as bicicletas, porque a alegria pelo nascimento de João transbordava. Sou daqueles que poderiam ter escrito os diários da bicicleta, embora eu não me ache tão chato quando o David Byrne pós-Talking Heads (melhorou recentemente).

“The Suburbs” é um dos mais emblemáticos discos dos últimos anos, junto com “The King is Dead” dos Decemberists, “Hight Violet” do The National e “Let England Shake” de P.J. Harvey. Preciso de uma certa distância para analisar um disco. Ouvindo “The Suburbs” agora, que ele começa a se acomodar nas ambiências do passado, as músicas tornam-se mais familiares e pareço estar pegando para ouvir novamente um daqueles clássicos absolutos como “Porcupine”, do Echo and The Bunnymen ou “Power, corruption & lies” do New Order. É um disco que se estabeleceu. Sem nenhum grande instrumentista de destaque, mas com um arranjos coesos e encorpados, o som do Arcade Fire em “The Suburbs” poderia ser classificado como indie rock com tons épicos e clássicos. Sim, é indie rock, mas o Arcade Fire não é uma guitar band. Sem cair no folk rock que deu a tônica ao rock alternativo dos anos 2000, os canadenses se destacam especialmente pelo seu vocalista e mentor Win Butler.

Destilando as influências de maneira personalíssima e com um cantor carismático, que às vezes nos dá a impressão de um Robert Smith mais contido, o Arcade Fire é, sem dúvida, ao lado dos já supracitados The National e Decemberists (e dos Arctic Monkeys, é claro…) uma das grandes bandas novas que continuam a confeccionar álbuns brilhantes, num mundo onde se escolhe três ou quatro faixas de cada disco e se esquece das outras.

Liricamente, o disco, como indica o título, retrata a vida dos subúrbios. Se uma das características da modernidade é a diminuição do espaço íntimo e a expansão alucinada da exposição do cotidiano banal dos indivíduos (vide a febre dos reality shows, os programas de tv especializados em fofoca, etc), é nos subúrbios que se preserva mais o espaço interior, onde se pode viver mais devagar, refletindo sobre o que se faz (o que é escrever senão fazer memória?). É aí que entra a lírica de Win Butler: busca de sentido, morte, relacionamentos, religiosidade, vida familiar…

A faixa título, na qual Butler distribuirá um falsete conduzido por uma levada clássica (piano, violão, bateria e um belíssimo arranjo de cordas), clama: “eu quero uma filha enquanto ainda sou jovem”.

“Modern Man”, com uma batida quebrada “como um disco que está pulando” e guitarras à la New Order junto com “Rococo” são críticas à vida moderna.

“Posso ser eu mesmo quando estou sozinho”, cantam Butler e sua esposa Regine em “Empty Room” . O difícil é estar sozinho numa sociedade em que o(s) Grande(s) Irmão(s) a tudo vigia e deseja controlar, ditando comportamentos, manipulando ideologicamente a cultura e promovendo uma silenciosa reengenharia social que acompanha cada acontecimento e evento midiático.

O mais terrível cerceamento da liberdade é o impedimento do indivíduo de se auto-analisar. É justamente isso que o mundo pós-moderno, sorrateiramente, faz. “Às vezes me pergunto se o mundo é tão pequeno que não consigo fugir do progresso”, questiona Regine Chassagne em “Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)”.

No mundo das redes sociais, onde é cada vez mais difícil ficar sozinho, a solidão avança. O autoconhecimento, o silêncio reparador, a anamnese diária vão sendo expulsos da vida das pessoas.

São os suburbanos, e alguns poucos “vagabundos iluminados” que ainda estão a salvo e têm a maior possibilidade de fazer um diagnóstico como Butler fez de “The Suburbs”. Mas com o advento da internet e da era Steve Jobs, nem mesmo os subúrbios, e nem o interior, onde vive este pobre camponês, está a salvo.

E Win Butler, com sua alma suburbana, é dos últimos neste mundo pop com algo substancial e profundo a nos dizer. Que venham outros diagnósticos, embalados com outras belas canções.

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Sergio de Souza
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Written by Sergio de Souza

Trabalho com produção de conteúdo textual. Brinco de traduzir The Red Hand Files.

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