Os riscos da poesia e escrever sobre o que é familiar

Sergio de Souza
4 min readMay 17, 2021

--

Uma tradução de uma resposta antiga de Nick Cave ao The Red Hand Files. Edição nº 59 / setembro de 2019

(tradução: Sérgio de Souza)

Susie Bick Cave

Minha namorada, uma mulher que amo desde o altíssimo céu ao mais tormentoso inferno, recusa-se a ler qualquer coisa que escrevo porque sempre enxerga em meus textos algum indício de infidelidade, ressentimento, ou talvez, loucura. Como faço para que ela entenda que, só porque posso escrever um poema sobre uma garota sensual que vi no trem, não quero realmente dormir com outra mulher?

CIRCIUM, COLORADO, EUA

Susie & Nick

Caro Circium,

Tom Waits escreveu a famosa frase “Você é inocente quando sonha”, mas os sonhos não são tão inocentes quanto parecem. Nem são canções nem poesia. Composição e poesia são vocações perigosas, cheias de possibilidades de intriga e infidelidade. São empreendimentos íntimos que arrastam-se em torno de nossas necessidades mais profundas e perigosas. Não são para os sensíveis ou para os ansiosos em agradar.

Acredito quando você diz que não quer dormir com a ‘garota sensual do trem’ — o problema é: o que você quer fazer é efetivamente pior. Você quer escrever um poema sobre ela. Escrever uma canção ou um poema sobre outro ser humano pode ser um dos atos mais intensamente íntimos que uma pessoa pode realizar, é um ato de contemplação profunda e vigilante, uma meditação quase religiosa sobre aquele momento de conhecimento carnal.

Ouça a versão de “Gloria” de Patti Smith, em que ela pegou o clássico já selvagem de Van Morrison e o expandiu para uma espécie de superalimentação religiosa de luxúria.

Olho pela janela

Vejo um jovem docinho

Correndo atrás do parquímetro

Apoiando-se no parquímetro

A “Gloria” de Patti Smith não está muito preocupada com o encontro sexual real, mas sim com a carnalidade brutal e o êxtase religioso da própria linguagem. É uma das demonstrações mais dementes de desejo sexual predatório já registrada. No entanto, está além do sexo. Está ainda além da adoração. É poesia. O “docinho” que está “correndo atrás do parquímetro” é a sua “garota sensual em um trem”. Gloria, Peggy Sue, Billie Jean, Angie, Delilah, Fernando, Jolene, Ruby, Maggie May, Chuck E., Sharona, Sara, Suzanne, Sweet Caroline e, na verdade, Deanna — esses nomes continuam vivos, como cordeiros sacrificiais, compulsivamente sexualizados em nossa consciência coletiva.

Minha música ‘Deanna’ foi vista como um ato particularmente brutal de traição, e trinta anos depois ainda não fui totalmente perdoado. Eu me consolo com o pensamento de que me mantive inabalável em meus deveres como compositor e, ao fazer isso, escrevi uma música que trouxe alegria para a vida de muitos, embora tenha partido um coração (ou dois) no processo.

De um locutor para outro, e de alguém que passou uma parte considerável de uma longa e conturbada carreira na casinha do compositor, esse é o nome do jogo, Circium. Por mais duro que seja, passamos a vida pisando nos corações e nas cascas de ovo que esmagamos para fazer a omelete que alimenta as multidões.

Posso entender perfeitamente por que você quer que sua namorada leia seu material, já que nós, poetas e compositores, muitas vezes não temos mais a oferecer do que nossas palavras e, claro, nossas pequenas e perversas verdades. No entanto, seus poemas são insinuações de uma aventura erotizada e imaginativa da qual sua parceira está excluída. Não é de se admirar que ela esteja relutante em se envolver.

Dito isso, com o passar do tempo, descobri um grande valor poético e pessoal em escrever sobre o que é familiar, o que está à sua frente, o que você vê todos os dias, o que dorme ao seu lado, pois muitas vezes essa presença cotidiana é a coisa mais extraordinariamente profunda e perigosa de todas. Essa presença possui o poder de ser um espelho para as verdades belas e terríveis que vivem dentro de nós. Quando olhamos nos olhos de nossa amada e vemos nosso eu refletido, nossa coragem como escritores é provada e se expande. A garota do trem estará sempre lá, sempre viajando por aquele espaço imaginativo, mas talvez o desafio para você como poeta esteja na complexidade maravilhosa daquela que está sentada à sua frente. Afinal, ela é o seu espelho.

Com amor,

Nick

--

--

Sergio de Souza
Sergio de Souza

Written by Sergio de Souza

Trabalho com produção de conteúdo textual. Brinco de traduzir The Red Hand Files.

No responses yet