“Ordinary man”, o memento mori de Ozzy Osbourne
Ozzy Osbourne vem, ao longo dos últimos meses, passando por graves problemas de saúde. Em janeiro, revelou que foi diagnosticado com Parkinson. E acaba de lançar seu décimo segundo álbum solo, no qual faz um verdadeiro Memento Mori, do alto de seus 71 anos. Claro, um memento mori de Ozzy é um memento mori de Ozzy. Não esperamos nada parecido com a sutileza poética de um Nick Cave, mas nos surpreendemos com a lucidez e coragem com as quais o veterano rockstar encara a senhora Dona Morte face-a-face. Talvez seja porque tenha sido o primeiro disco, por conta do constante cuidado médico, a ser gravado longe das drogas e do álcool: “Esse é o primeiro álbum que eu ajudei a compor e gravei completamente sóbrio”, disse numa entrevista.
A porrada diabólica da faixa de abertura, “Straight to Hell”, já nos introduz no universo habitual do Príncipe das Trevas, que desde os primórdios de sua banda de origem, o Black Sabbath, flerta com o sinistro: já que há um sujeito às portas da morte, o diabo aparece para tentá-lo e aterrorizá-lo com a possibilidade da danação. Com um instrumental coeso que já apresenta as credenciais da banda que gravou o álbum, Ozzy empresta sua voz ao tentador: “Eu vou fazer você mentir, eu vou fazer você roubar e matar, eu vou fazer você rastejar até sua emoção final… Aproveite o passeio, vou plantar minha semente amarga; você vai se matar, e eu vou assistir você sangrar. Direto para o inferno esta noite, nós estamos indo direto para o inferno…” Assustador ? Mas nada longe da realidade…
“All my life” chega mais lenta e reflexiva, com Ozzy encontrando-se consigo mesmo quando criança. Este parece o disco onde Ozzy, antes de fechar as cortinas, resolveu acertar as contas com a vida. O menino Ozzy diz para o ancião, desmascarando-o diante do outono de sua própria história: “Conheço todas as mentiras que você esconde por trás de cada sorriso falso. Vou ficar sozinho como você?” Se toda canção ou obra de arte tem algo biográfico, este é um corajoso acerto de contas consigo mesmo… Muito embora seja menos angustiada que a anterior, “All my life”, mantém os pés presos na areia movediça do desespero espiritual: “O céu pode me levar, mas ninguém pode salvar-me do inferno novamente. Você nunca vai me emendar. Estou de volta à estrada novamente.”Parece estar permanentemente diante da constatação de que a vida deu errado.
Em “Goodbye” , o sujeito suicidou-se e está numa espécie de purgatório. Você pode ouvir o disco sem pensar em nada do que está sendo dito, como normalmente se faz com qualquer disco de rock. Mas aqui o personagem da canção está narrando seu próprio funeral: “Não há futuro, não, não, não há futuro. Substitua-me, agora que fui embora. Vestidos pretos, rosas negras. O mundo continua girando. Chore por mim, chore por mim: é o que eu realmente quero. Parto acreditando que meu trabalho aqui está feito”. A alma encontra-se no além: “Sentado aqui no purgatório, não tenho medo de queimar no inferno. Todos os meus amigos estão me esperando, posso ouvi-los gritando por ajuda, clamando por ajuda”. A música fala por si mesma. O desespero mais uma vez morde o calcanhar. Numa tentativa de olhar para o alto, a alma reza, ainda sentindo os resquícios da vida desgraçada: “Nenhuma recompensa por suicídio, a dor da vida ainda pode ser sentida. Mãe Maria, Jesus Cristo, eu queria que vocês me ouvissem pedindo ajuda, clamando por ajuda”.
A música título, que conta com o piano e a voz de Elton John e um belo solo de guitarra de Slash desvia musicalmente o álbum do ambiente pesado para mergulhar em um clima de épica nostalgia. Uma canção com tudo para figurar ao lado das melhores baladas da carreira de Ozzy. O Príncipe das Trevas continua sua anamnese pessoal, onde diz que não quer morrer como um homem ordinário, muito embora admita, que apesar da fama, da consagração como músico, do nome escrito na história, não passa de um homem comum quando se apagam as luzes do palco :
“Eu não estava preparado para a fama De repente todos sabiam meu nome Sem noites solitárias, é tudo para você Eu viajei muito Vi lágrimas e vi sorrisos Só se lembre de que é tudo para vocês
Não me esqueça enquanto as cores desbotam Quando as luzes se apagam, é apenas um palco vazio”.
“Under the graveyard” começa com uma bela intro de guitarra e é uma das mais belas do álbum. Num clima totalmente sabbathiano, Ozzy continua confrontando a solidão da morte: “Todos nós morremos sozinhos”. Novamente aparece a preocupação com a salvação/danação: “Nenhuma altura vai me salvar das profundezas do inferno.”
“Eat me” é outra sabbathiana. Inclusive começa com a gaitinha que lembra a época do Sabbath. Curioso é que Ozzy, em vez de emular a si mesmo, parece ter buscado uma volta à sonoridade de sua antiga banda. Talvez isso se deva a ter trabalhado com os amigos em “God is dead?” e “The end”. O tema de “Eat me” desacorda com o tratamento mais dramático em relação à morte das faixas anteriores, partindo para uma letra sarcástica onde o sujeito oferece o próprio corpo — numa sessão macabra de canibalismo — como banquete para quem está ouvindo. Sinistro, como um bom filme de terror (com Ozzy, quase sempre misturado com humor).
“Today is the end” volta à temática anterior (os títulos das faixas entregam tudo). O clima pesado, mas carregado de beleza soturna está volta. Assim como as obsessões com inferno, salvação, escolha, pós-morte… “O caminho para o inferno não está pavimentado, nem toda alma pode ser salva (você colhe o que planta)”, canta Ozzy, que, aliás, está em ótima forma vocal. “Será que hoje é o fim?”
“Scary little Green men” retorna ao clima cinematográfico e fala de pequenos homenzinhos verdes que podem ser alienígenas ou uma alucinação da mente. Poderia muito bem ser um hit, se ainda houvesse hits de heavy metal fora dos shows. É preciso dizer que a banda, com Chad Smith e Dugg McKagan na cozinha e o produtor Andrew Watt nas guitarras, encaixou muito bem. Foi até bom a banda “oficial” ter ficado de fora, pois assim há mais espaços e simplicidade, sem as firulas de Zakk Wilde (que é grande). Nesta faixa, há a participação de Tom Morello.
“Holy for tonight” é uma belíssima e triste balada. Mais uma vez apresenta alguém que se despede, às portas da morte (“palavras finais”, “último suspiro”). Aqui se dirige ao pai (ou ao Pai?) e pela primeira vez no álbum manifesta uma espécie de arrependimento genuíno e um sincero desejo de redenção, quando diz “posso ter contado um milhão de mentiras, mas eu serei santo por esta noite”, “nesta longa e solitária noite”. Seria um ótimo fim de álbum. Soa como um adeus, como um canto de cisne. Muitos fãs desejariam que o álbum terminasse por aqui…
Mas ainda há duas músicas, que, sinceramente, parecem uma inserção artificial num álbum tão coeso, e destoam da proposta geral do disco. “It´s a raid” e “Take what you want” contém participações dos rappers Post Malone e Travis Scott e não são faixas exatamente ruins, mas estão em um patamar nitidamente inferior ao trabalho. Poderiam ter sido colocadas, separadas, no serviço de streaming. Para quem ainda carrega a noção de álbum completo, que não seja apenas uma reunião de canções soltas, mas tenha um “conceito” (sem ser necessariamente conceitual), isso ainda faz sentido. Hoje, no entanto, os tempos são outros e as pessoas talvez pouco liguem para o fato de essas duas destoantes estarem ali. Estou ficando velho e chato.
O que importa é que Ozzy lançou mais um grande álbum, vindo de um período bastante tempestuoso, o que já é um alento perto das notícias preocupantes sobre sua saúde. Embora o disco tenha um tom de despedida, o cantor já avisou que está gravando seu sucessor. Todos esperamos que ele tenha longos anos pela frente e continue nos aterrorizando com grandes canções.