O significado de “Carnage”
Na Edição nº 155 de The Red Hand Files (junho de 2021 ), Nick Cave responde à quatro fãs sobre o significado da canção-título de seu mais recente álbum (em parceria com Warren Ellis).
(tradução: Sérgio de Souza)
Ouvi sua música, “Carnage”. Que bela canção. Linda e triste música. Há muitos anos não ouço uma música tão bonita e triste. ( PETER, HAMBURG, ALEMANHA)
Pode nos contar algo sobre o pano de fundo da música “Carnage”? (EVA, GRAZ, ÁUSTRIA)
Você poderia nos contar algo sobre a música “Carnage” (apenas algumas impressões) ? Eu não consigo parar de ouvi-la. (KAREN, LOS ANGELES, EUA)
Sobre o que é “Carnage” ? É uma música tão misteriosa... Você pode nos dizer algo (qualquer coisa) sobre ela? (SIGNE, MALMO, SUÉCIA)
Caros Peter, Eva, Karen e Signe,
Já faz algum tempo desde que ouvi “Carnage” pela última vez. Vou tocá-la agora e, à medida em que vierem, darei a vocês minhas próprias impressões
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“I always seem to be saying goodbye / and rolling through the mountains like a train.”
(“Pareço estar sempre dizendo adeus / e serpenteando as montanhas como um trem”)
Estou muito satisfeito com essa linha de abertura. Acho que é a melhor que escrevi em muito tempo. E leva-nos diretamente ao centro da música, emocionalmente, física e poeticamente.
‘My uncle’s at the chopping block, turning chickens into fountains / I’m a barefoot child watching in the rain.’
(“Meu tio com a tábua de corte, transformando galinhas em sustento / Eu sou uma criança descalça assistindo a tudo na chuva.” )
A música começa como uma lembrança (assim como “Albuquerque’) com um ato inicial de carnificina (“carnage”), uma memória de infância de meu tio decapitando uma galinha no pátio de sua casa de campo em Mount Martha. Observei, na chuva, uma pequena criança intrigada. O acorde sobe lindamente! Meu momento favorito do álbum! (Obrigado, Warren).
‘That stepped into this song / taken a bow / and stepped right out again.’
(“Isso entrou nesta canção / fez uma reverência / e novamente se retirou”)
A criança entra na construção da música, como uma aparição, despede-se e depois retira-se como é próprio nas memórias. A música volta ao seu acorde de abertura à medida em que voltamos para o tempo presente: o narrador sentado na varanda lendo — e escrevendo a própria música, ‘Carnage’.
‘I’m sitting on the balcony / reading Flannery O’Connor with a pencil and a plan.’
(“Estou sentado na varanda / lendo Flannery O’Connor com um lápis e uma planta.” )
Eu havia acabado de ler um artigo que tratava das posições infelizes de Flannery O’Connor em relação à raça e seu subsequente cancelamento, e experimentando aquele hoje em dia tão familiar sentimento de tristeza conflituosa, de observar alguém que amei por tanto tempo e que tanto deu ao mundo, ser jogada para escanteio devido às acusações de um presente implacável, levando parte de mim com ela. Mais carnificina (“Carnage”).
Adorável meia-rima de “varanda” (“balcony”) com “Flannery”!
“This song is like a rain cloud that keeps circling overhead / here it comes around again.‘
(“Esta canção é como uma nuvem carregada circulando no ar / ei-la aqui novamente.”)
A nuvem de chuva é o próprio coro, esperando para explodir, e quando o coro entra, começa a chover.
“And it’s only love with a little bit of rain / and I hope to see you again.”
(“E é somente amor com um pouco de chuva / e eu espero vê-lo novamente.”)
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Segundo verso e somos lançados para o futuro.
‘A raindeer frozen in the headlights steps back into the woods / my heart it is an open road where we ran away for good.‘
(“Uma rena paralisada pela luz dos faróis volta para a floresta / meu coração é uma estrada aberta onde fugimos para sempre.”)
O casal heroico está na estrada, impulsionado pela música, fugindo do passado, do presente, e viajando para um futuro fantástico, para o amor espiritual, para o advento, para a morte e para a transcendência.
‘Look over there! Look over there! / the sun a barefoot child with fire in his hair.‘
(“Olhe lá! Olhe lá! / o sol, uma criança descalça com fogo no cabelo.”)
Adorável intervenção das cordas (obrigado novamente, Warren) que corresponde à visão extática final da criança, em chamas, instalada no sol. Estou muito satisfeito com esse verso ta mbém— a mulher apontando para a visão compartilhada.
E então a detonação extática!
‘And then a sudden sun explodes!’
(“Eis que de repente o sol explode!”)
E as palavras secretas, murmuradas, como se fossem para mim.
‘It was you, it was you, and only you.’
(“Foi você, foi você, e somente você.”)
A música se desenrola no refrão e, em seguida, retorna ao sentimento inicial, do amor como o motor de todas as coisas e a vida como uma despedida perpétua, mais tarde ecoado também em “Lavender Fields” e “Shattered Ground”.
Ao fim, “Carnage” cumpre a promessa da primeira linha, pois liberta-se da carnificina (“carnage”) do passado e do presente, na forma de uma conversão, para a serena plenitude do tempo. E diz adeus.
‘And it’s only love / driving through the rain / rolling down the mountains / like a train / it’s only love / and it comes on like a train / rolling down the mountains / in the rain.’
(“E é somente amor / dirigindo pela chuva / rolando montanha abaixo / como um trem / é apenas amor / e vem como um trem / rolando montanha abaixo / na chuva.”)
Espero que esses pensamentos tenham algum valor — não tenho certeza se acrescentam algo — e espero que com eles eu não tenha ido longe demais.
Com amor,
Nick