“O que Cristo significa para você?”

Sergio de Souza
3 min readFeb 23, 2021

--

Nick Cave responde à pergunta 136 em The Red Hand Files

(tradução: Sérgio de Souza)

“Tolstoi e seus amigos”, foto de Nick Cave

Tenho lido "O Evangelho Breve" de Tolstoi e me perguntado se você leu este pequeno livro. O que Cristo significa para você? Eu ouço seu nome ser mencionado em muitas de suas canções, mas tematicamente há alguma ambiguidade. Você se considera um cristão?
ELLERY, RAMSBOTTOM, Reino Unido

(***)

Nick Cave
Caro Ellery,

Você está certo ao dizer que há alguma ambiguidade no meu relacionamento com Cristo. Eu não me considero um cristão - pelo menos "na maioria das vezes", como diria Bob Dylan. Os assuntos espirituais para mim estão sempre em movimento evolutivo, jamais estáticos, e estimulam-me em seu mistério, incerteza e recorrente espírito combativo.

No entanto, acho que há muita verdade aqui. Acredito que exista uma essencialidade unificadora dentro de todas as pessoas - o espírito, a alma - e que esse espírito é inocente e bom e conectado ao divino. Sobre esse espírito essencial de bondade, colocamos, ao longo de nossas vidas, mecanismos, estratégias, agendas, defesas, transgressões - camadas de comportamento que se acumulam e se aprofundam, como a "plataforma costeira"* (“coastal shelf”) de Philip Larkin, e englobam esse núcleo de bondade, separando-nos da natureza do mundo. Embora eu acredite nisso, acho extremamente difícil me conectar profundamente com essas noções invisíveis - o espírito e a alma.
Pessoalmente, preciso ver o mundo por meio de metáforas, símbolos e imagens. É por meio de imagens que consigo me envolver de forma significativa com o mundo. A personificação dessa noção invisível do espírito é necessária para que eu a compreenda plenamente. Acho que usar a palavra "Cristo" como o símbolo atualizador da bondade eterna presente em todas as coisas me é extremamente útil. O Cristo em tudo faz sentido para mim - posso ver - e me ajuda a agir com mais compaixão no mundo.

Parece-me que às vezes praticamos uma espécie de compaixão condicional e reservamos nossa boa vontade para aqueles que julgamos merecer. Para praticar uma forma de compaixão universal, acho considerável a lembrança do valor que possui o nosso amor como uma tábua de salvação lançada àquela pura essencialidade, o Cristo profundamente dentro de nós, sepultado, sofrendo e ansiando por nossa ajuda.

Atos de compaixão, bondade e perdão podem fazer acender esse espírito de bondade dentro de cada um, e no mundo. Pequenos atos de amor espalham-se e vão em socorrem desse espírito animado, o Cristo suplicante, tão necessitado de reabilitação.

Com amor,
Nick* “coastal shelf" — traduzido por Nelson Archer como “fossas”, por Rui Carvalho Homem como “o fundo do mar", e por Alipio Correia Neto como “baixio" ou “recife”. Já Pipa Passes traduz para o espanhol como “placa costera".

***

Este Seja o Poema (Philip Larkin)

trad. Nelson Ascher.

Teu pai e mãe fodem contigo.
Que não o queiram, tanto faz.
Legam-te cada podre antigo,
além de uns novos, especiais.

Mas de cartola e fraque, outrora,
fodera-os já do mesmo modo,
gente ora austero-piegas,
ora se engalfinhando cega de ódio.

Passa-se a dor adiante: fossas
num mar que só fica mais fundo.
Dá o fora, pois, tão logo possas
sem pôr nenhum filho no mundo.

em: Folha de São Paulo, 30/06/2008. Disponível aqui.

Philip Larkin

--

--

Sergio de Souza
Sergio de Souza

Written by Sergio de Souza

Trabalho com produção de conteúdo textual. Brinco de traduzir The Red Hand Files.

No responses yet