O contrabaixista

Sergio de Souza
3 min readDec 15, 2018

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Donald ‘Duck’ Dunn

O contrabaixista é um ser solitário, introspectivo, que preferiu ficar na retaguarda. Um misantropo. Tenho a impressão de que todo contrabaixista é um ser visitado por um anjo na manhã de sua vida para lhe dizer: “Vai, Sergio, ser contrabaixista na vida.”

Ser contrabaixista não é questão de escolha, é vocação. Ninguém escolhe ser Billy Cox podendo ser Jimi Hendrix. Já nasce assim: para ficar atrás, nos bastidores, escondido pelas cortinas, misturado com os roadies, anti-protagonista. Comecei a prestar mais fixamente atenção nos baixistas quando alguém chamou-me a atenção para Donald ‘Duck’ Dunn tocando com Neil Young. Era a personificação do baixista: taciturno, seco, sem jeito, como um cachorro caído da mudança, com cara de quem preferia estar pitando um cachimbo ali no canto… Mas que músico! Seu instrumento pulsava discretamente por detrás da zorra epilética que Neil Young armava no palco. Contrabaixistas são assim. Quer um cara mais na dele do que John Paul Jones?

Ser contrabaixista é nascer com tino para coadjuvante. Com discrição, eficiência e feeling, vai se deixando o protagonismo para segundo plano. Pegue seu “The Joshua Tree” e escute Adam Clayton; pegue seu “The Queen is Dead”e preste atenção em Andy Rourke.

Sei que existem baixistas atípicos e geniais, que traem sua vocação, que trazem dentro de si uma alma de fogo e deturpam o que deveria ser feito, pervertem a natureza de seus instrumentos; tocam o baixo como se fosse outra coisa. Assim são Les Claypool, Jaco Pastorius e Peter Hook, por exemplo.

E há outros que deixaram o cargo de instrumentistas em nome de missões maiores, como as de serem compositores, arranjadores e criadores de concepções musicais grandiosas (álbuns clássicos, óperas-rock, etc) como Brian Wilson, Paul McCartney e Roger Waters.

Mas aqui, para usar uma expressão luxemburguiana, queremos tratar do baixista-baixista. Aliás, só para esclarecer, Luxemburgo errou. Porque o zagueiro-zagueiro deveria ser elegante, clássico, inteligente e sóbrio. Tudo o que o Odvan não era. Mauro Galvão era o verdadeiro zagueiro-zagueiro. Um gentleman, homem de porte. Deixando de lado as divagações futebolísticas para voltar às contrabaixísticas, é assim também o baixista-baixista: elegante, clássico, inteligente, sóbrio.

Vá lá, pegue seu “What´s goin’ on”, de Marvin Gaye, e preste atenção nas performances de James Jamerson e de Bob Babbit. Ou seu “Astral Weeks”, com o avassalador, sem deixar de ser cool, Richard Davies no contrabaixo acústico. Veja se não são assim, como os zagueiros clássicos, que nunca dão chutões para o mato?

O contrabaixista é o essencial dispensável. A base que controla o êxtase alheio. O vice-campeão. O que faz a cama para outros deitarem. O que fica na cozinha para outros degustarem. O botafoguense da música. O que vai para o palco com o vento soprando na direção contrária; contra toda esperança. Com gosto, a contragosto. Alegria e tristeza de mãos dadas. Ouça Les Pattinson nos quatro primeiros ábuns do Echo and the Bunnymen.

Não acredite na aparente serenidade do contrabaixista. Ele é um poeta, um fingidor. Carrega dentro de si um vesúvio que nunca explode, mas se expressa delicadamente, veladamente, até que tudo se consuma num silêncio sem fim. Silêncio. O contrabaixista tem um pacto com o silêncio, que raramente viola. É um monge. Um servo. Um servo da canção. É capaz de sacrifícios imensos em nome da canção. Da perfeita canção.

Alguém se lembra das notas iniciais de “Be my baby”?

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Sergio de Souza
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Written by Sergio de Souza

Trabalho com produção de conteúdo textual. Brinco de traduzir The Red Hand Files.

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