Ninguém é confiável
Ninguém é confiável. A gente confia porque a confiança é o padrão humano de relacionamento e porque não há outro modo de estabelecer uma união com o outro a não ser pela confiança. As relações baseadas no medo e na suspeita não são ancoradas no amor. O amor pressupõe confiança e a confiança pressupõe perdão. E se pressupõe perdão é porque há erro envolvido. Não há outro jeito, o pecado original estragou tudo: a gente confia para viver, e vivendo se frustra e se decepciona (assim como frustra e decepciona os outros).
Trocando em miúdos: a gente confia sabendo que vai se decepcionar. Viver bem é aprender a administrar isso. Entendi com Henri Nouwen: nesta vida, alegria e tristeza caminham de mãos dadas. O amor é uma comunhão entre feridos, e feridos que se machucam entre si. Amar é conviver com um ser insuficiente com o qual aprendemos ao longo de anos de convivência a arte de não esperar que o descanso do coração venha de quem é incapaz de suprir o preenchimento de nossas expectativas. Amar é conviver com alguém que te frustrará e não irá corresponder à sua fidelidade, e que, por sua vez, também terá que perdoar suas imperfeições.
Ninguém é confiável, mas as únicas relações humanas capazes de nos conduzir pelo caminho da felicidade, são baseadas na confiança. Confiamos, então, biblicamente, “em esperança”. Confiamos na esperança de que nosso amor, depositado decididamente naqueles que escolhemos para caminhar ao nosso lado nesta vida, possa ser o suficientemente grande — e só o poderá com a ajuda da graça — para não ser diminuído e esfacelado nos momentos difíceis, sabendo que o perdão não é uma opção, mas uma via, e que só com ardentes paciência, insistência e perseverança, chegaremos lá. Confiando que o nosso coração conseguirá atravessar o vale da sombra da morte através do qual toda relação humana precisa passar para ser provada pela vida, por Deus e, enfim, para mostrar para nós mesmos que, aos trancos e barrancos, conseguiremos, esperando que também o outro tenha a mesma disposição misericordiosa para conosco. Aceitar a própria imperfeição é o caminho para a perfeição possível neste mundo. O perfeccionismo paralisa a longa jornada rumo à felicidade.
Ninguém é confiável, no sentido em que tentei explicar acima. Mas as pessoas que escolhemos para viver conosco, as quais — esperamos — também nos escolheram para sermos seus cúmplices neste oceano de incertezas que é a vida, são confiáveis na medida do nosso discernimento. Temos inteligência e vontade para decidir. Ninguém nos obriga a viver com alguém, senão nossa própria vontade. Ninguém é confiável, mas os inconfiáveis que escolhemos, mesmo indignos da nossa confiança, são os que decidimos amar e perdoar.
A relação em que se confia sem se decepcionar é a religião. A referência de relacionamento que gerou o modelo humano é a relação entre as três pessoas da Santíssima Trindade, chamada no Gênesis de “Deus”, que criou o homem à sua imagem e semelhança. Os teólogos e pensadores cristãos, nos fecundos debates ao longo dos séculos, na tentativa de ir penetrando o Mistério, foram tecendo conceitos como “pessoa”, e a partir dele, esmiuçando as relações humanas como reflexo da Trindade (essa frase é extremamente simplista). A relação chamada religião também é humana porque Cristo se fez homem e permitiu, por pura graça, que participássemos das relações da Trindade e, assim, aprendêssemos a gratuidade e incondicionalidade do amor verdadeiro. A relação em que se confia sem se decepcionar é a religião porque a religião é, em certo sentido, a relação com Deus. E em Deus se pode confiar plenamente. Ele é o único Ser confiável Termino essa breve reflexão com um trecho de São João:
“Nós conhecemos e cremos no amor que Deus tem para conosco. Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele. Nisto é perfeito em nós o amor: que tenhamos confiança no dia do julgamento, pois, como ele é, assim também nós o somos neste mundo. No amor não há temor. Antes, o perfeito amor lança fora o temor, porque o temor envolve castigo, e quem teme não é perfeito no amor. Mas amamos, porque Deus nos amou primeiro.”
(I São João 4 ,16–19)