Nick Cave responde sobre “The Boatman’s Call”

Sergio de Souza
3 min readJan 28, 2021

--

Pergunta nº 132 / janeiro de 2021

(tradução: Sérgio de Souza)

Nick Cave, Londres, 1999, por Anton Corbijn

“Gostaria de agradecer por lançar Live at Alexandria Palace e, especialmente, por tocar aquelas músicas do Boatman’s Call. Escutei esse disco repetidamente quando era uma solitária garota de 12 anos, intimidada e suicida; e acho que tomei essa experiência de ouvi-lo como uma espécie de fantasia de amor, com toda a doce e horrível dor e aventura que isso me traria.

Lembrei-me desta época assistindo a uma entrevista em que você disse ter sentido-se um tanto “enojado” com certos elementos daquele álbum. Nunca consegui entender o que você quis dizer com isso na ocasião.

Agora, 20 anos depois, experimento amor, dor e aventura. Ouvindo suas versões dessas canções no Alexandria Palace, não mais me soaram fantasiosas. São tão reais quanto eu em minhas tentativas de viver.

Por que você sentiu-se enojado naquela época? O que essas músicas significam para você agora e o que o fez revisitá-las? Gostaria que você pudesse ter me visto como uma criança de 12 anos tentando descobrir o que significa “um Deus intervencionista”. Obrigado por trazer tanta luz para minha vida.

ELINA, HELSINKI, FINLÂNDIA”

Nick Cave, por Anton Corbijn

“Querida Elina,

The Boatman’s Call foi um álbum nascido de um infortúnio pessoal que levou-me à uma mudança da composição narrativa-fictícia para um tipo de escrita mais autobiográfica. Artisticamente, minha mão foi forçada por uma convergência de eventos que à época me pareciam tão calamitosos que eu não conseguia encontrar uma maneira de escrever sobre qualquer outra coisa. Não que eu tivesse qualquer desejo de escrever um “disco de separação”, mas esses eventos apenas bateram nas muralhas do meu modo de compor e tomaram o controle.

Depois que The Boatman’s Call foi lançado, senti uma espécie de constrangimento. Eu senti que havia me exposto demais. Essas canções hiper-pessoais de repente pareciam por demais indulgentes, amplificações egoístas do que era essencialmente algo ordinário, um lugar-comum em termos de provação. Todo o drama, tragédia e ansiedade “me enojaram”, e eu disse isso em entrevistas à imprensa.

Com o tempo, porém, aprendi que a repulsa era essencialmente o medo e a vergonha de quem nadava incertas águas entre dois barcos — canções ficcionais e canções de natureza autobiográfica ou confessional. Uma mudança radical estava ocorrendo no meu modo de compor, e isso acontecia sem um controle efetivo de minha parte; e tais mudanças possuem o potencial para deixar alguém extremamente vulnerável, defensivo e reativo. Claro, eu não vejo mais The Boatman’s Call dessa forma e entendo que o álbum foi um salto necessário para um modo de compor que acabaria por se tornar exclusivamente autobiográfico — Skeleton Tree e Ghosteen, por exemplo — mas, inversamente, menos sobre mim e mais sobre nossos “eus” coletivos. Quando eu cantei as canções de The Boatman’s Call para o filme Idiot Prayer, elas não pareciam mais com gritos emanando das pequenas, mas cataclísmicas, devastações da vida. Tornaram-se mais sobre a libertação espiritual de si mesmo, sobre algo mais amplo e abrangente — não exatamente transcendente — mas expansivo, no sentido de que nos reuniram a todos na comunalidade da experiência que tentam expressar. Pelo menos, eu esperava que fosse assim.

Obrigado, Elina, por sua doce história. Curiosamente, ainda estou tentando descobrir o que o primeiro verso de Into My Arms realmente significa. É um peixe escorregadio e — como muitos bons versos — difícil de agarrar, tão evasivo e enganador quanto o próprio tempo.

Com amor,

Nick

--

--

Sergio de Souza
Sergio de Souza

Written by Sergio de Souza

Trabalho com produção de conteúdo textual. Brinco de traduzir The Red Hand Files.

No responses yet