Nick Cave reponde a uma belíssima carta sobre crise de dúvidas

Sergio de Souza
3 min readApr 19, 2021

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Questão 143 de The Red Hand Files

(tradução: Sérgio de Souza)

Nick Cave, Revista Flaunt

Caro Sr. Cave,

Você já passou por alguma crise de dúvidas?

Uma garota estava se apaixonando por mim e, enquanto ela me cortejava, compartilhou uma parte de si mesma que era muito identificada com você. Nunca havia escutado ouvido sua música antes, e me surpreendeu saber que éramos parecidos— nascemos dentro de um raio de 100 km um do outro. A garota que me amava compartilhou comigo amizade, perdão e uma figura de grandiosidade não familiar que em dado momento chegou de algum perto aqui.

Agora tenho dois filhos pequenos, Max e Joey. Eles gostam de ouvir sua música, eles dançam pela sala. Joey é um para-raios emocional que sente o mundo mais intensamente do que qualquer um que eu já tenha conhecido. Já o pequeno Max ainda não fala, mas canta; e quando sorri, você pode ver claramente através de sua alma. Um dia, quando tiverem idade para realmente entender, direi para eles que você esteve aqui. Direi a eles que eles podem aspirar a ser mais do que uma pessoa de um único lugar, e talvez eles não acabem como seu pai.

THOMAS, MELBOURNE, AUSTRÁLIA

Mercy on Me, by Reinhard Kleist.

Caro Thomas,

Você enviou esta carta há algum tempo e eu sempre volto a ela, respondendo ao seu coração maravilhosamente correto e e cheio de ternura. Eu a li para várias pessoas, incluindo o diretor de cinema e amigo, Andrew Dominik, que basicamente chorou, assim como fez minha assistente, normalmente rígida, Rachel. Parece uma história de Raymond Carver — esguia, adorável e triste — um universo em cada linha. Recebi e li cerca de quarenta mil cartas no The Red Hand Files e a sua talvez seja a minha favorita. Estou muito feliz que esta carta tenha sido escrita por um cara da minha cidade natal, Melbourne — isso me deixa orgulhoso. Se já tive dúvidas sobre mim mesmo? A resposta é sim, muito mesmo. Minha dúvida tende a se manifestar em ondas quentes e repentinas de constrangimento, e geralmente surge junto com uma perda de humor ou do espírito de entretenimento — ou melhor, quando começo a me levar, e na verdade, levar a vida, muito a sério. Parece surgir como uma resposta contrária ao meu próprio senso de auto-importância. A dúvida é comum a todos nós, suspeito, e por mais incômoda e desagradável que seja, uma certa quantidade pode ser a verdadeira força humanizadora, mantendo-nos humildes, vulneráveis, de mente aberta e conectados ao mundo. Mas, é claro, precisamos permanecer vigilantes e não permitir que nossa dúvida se torne compulsiva — para nos aprisionar, nos fechar e nos tornar incapazes de nos mover para frente. Nessas horas, vale lembrar que o mundo pode ser engraçado — nós também — e não nos levarmos muito a sério.

Mas, Thomas, o principal motivo pelo qual estou escrevendo para você é apenas para dizer obrigado por sua carta, é uma coisa excelente, realmente, e algo que vou valorizar muito. Quando li para Susie esta manhã, ela disse: ‘Que homem adorável’. ‘Sim, eu sei’, disse, ‘Ele é de Melbourne’.

Com amor,

Nick

Susie Bick Cave

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Written by Sergio de Souza

Trabalho com produção de conteúdo textual. Brinco de traduzir The Red Hand Files.

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