Nick Cave e seu método de composição
Respostas à questão 156 de The Red Hand Files
(tradução: Sérgio de Souza)
Sempre senti afinidade por compositores que utilizam bastante método em seu processo de composição como se estivessem construindo uma mesa de madeira, com tudo em seu devido lugar. Você acha que é mais importante buscar inspiração ou sentar-se para trabalhar e escrever? (JAKE, HAMILTON, CANADA)
Como é escrever uma canção? (FREYA, SYDNEY, AUSTRALIA)
Queridas Jake e Freya,
Também tenho afinidade com artistas que enxergam seu talento como uma tarefa e não ficam dependendo dos caprichos da inspiração — porque eu sou um deles. Como a maioria das pessoas que têm um emprego, apenas nos dirigimos ao trabalho. Nunca nos ocorre que não deveríamos trabalhar, não há um momento em que deixamos de trabalhar porque “não nos sentimos chamados” ou porque “as vibrações não estão boas”. Apenas cumprimos nossas horas, como estou fazendo agora, escrevendo para você, Jake, e para você, Freya.
O empreendimento mais importante do meu dia é simplesmente sentar em meu escritório e empunhar minha caneta. Sem esse gesto elementar não poderia denominar-me um compositor, porque as canções chegam para mim como sugestões muito sutis a serem percebidas, a menos que eu esteja preparado e pronto para captá-las. Elas não fazem alarde, mas vêm como um sussurro, e chegam somente quando estou trabalhando.
Caneta à mão, sento em posição de sentido, arrumado em meu terno, no limite da minha imaginação, preparado para a chegada de um belo verso. Às vezes ele vem, às vezes não — seja como for, sou impotente quanto ao desenlace. Somos frequentemente despojados quanto à nossa perspicácia, chegando a lugar nenhum com nossos esforços. No entanto, há ocasiões em que somos afortunados.
No terreno da imaginação, todo tipo de coisas inexplicáveis podem acontecer. O tempo endoidece, o passado se bate com o presente e o futuro põe diante de nós seus segredos. De repente, as palavras comportam-se de maneira maravilhosamente inesperada, nosso pulso acelera, sentimos deliciosas borboletas explodindo no estômago, e o processo de composição torna-se uma espécie de colisão entre o pragmático e o completamente “gagá” — transcendental, ultrajantemente religioso — então Deus aparece, ei-Lo, com todos os Seus travestidos anjos e demônios e outras coisas, das quais nem faço idéia, espíritos murmurando coisas indizíveis, musas gordinhas e rosadas caindo de um lado para outro, pequenas formas infantis com os braços estendidos, chamando, instruindo, e o belo verso começa a tomar forma, emergindo suavemente — olha ele aí ! — caindo adoravelmente pelo bico da sua caneta.
Então está feita a sua tarefa diária e você cai fora. É noite de Sábado, hora do jantar e o nome de seu cavaleiro é Irfan. Boa noite, Jake. Boa noite, Freya.
Com amor,
Nick
