Luto, esquecimento, raiva e amor, por Nick Cave

Sergio de Souza
3 min readNov 10, 2021

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RED HAND FILES EDIÇÃO Nº 171 / NOVEMBRO DE 2021

Quando você escreveu “Heart That Kills You”? Coisa linda!
WILL, MELBOURNE, AUSTRÁLIA

Você parece ter vivido em muitos países diferentes. Por que você saiu de Brighton? Onde você mora agora?
LINDA, BRIGHTON, RU

Você não está mais furioso pra caralho?
HELEN, MONTREAL, CANADÁ

Caros Will, Linda e Helen,

É muito difícil lembrar as circunstâncias em torno das quais nasceram muitas das canções do álbum “B Sides & Rarities Part II”, porque a maioria foi escrita no período imediatamente após a morte de meu filho. Parte da minha própria experiência de luto foi uma espécie de esquecimento — onde porções significativas da minha vida após a morte de Arthur parecem em grande parte perdidas para mim, ou melhor, tão esquecidas que têm pouca relação com a verdade.

Acabei de ouvir ‘Heart That Kills You’ e posso dizer claramente, pela letra, que foi escrita após a morte de Arthur, e provavelmente é um fragmento de música rejeitado ou esquecido que encontrou seu caminho nas sessões que Warren e eu fizemos antes da produção de Ghosteen. Tem aquele som de desejo e busca.

A canção trata de Adão e Eva, um tema recorrente sobre marido e mulher que parece ter sido usado em algumas canções da época. Assim ela começa -

Adão observa sua pequena Eva

Dormindo em meio à neve

Os amantes foram expulsos de seu ordinário Éden pela aparição de serpentes que vêm na forma de uma catástrofe, e -

Enterram dentro dela as suas presas

O verso termina com as linhas -

Não, não podemos ficar; como maçãs, cairemos

E partiremos do jardim até Los Angeles.

O segundo verso se passa no vôo para Los Angeles e começa com a linha -

Estamos começando nossa descida

Eva olha pela janela e observa -

Bebês andando nas nuvens, transformando-se em nuvens

Conforme o avião — ‘a lata’ — se inclina para baixo

E como uma maçã cai

Numa era velha e furiosa

Raramente olho para o passado e, por isso, fico grato por você ter me levado de volta até essa música, porque ela contém alguns adoráveis ​impulsos ​de prazer lírico. Digo isso como alguém que não tem nenhuma lembrança da concepção ou intenção da música, e que sente que quase não teve muito a ver com a sua composição.

A letra da música explica por que Susie e eu mudamos de Brighton para L.A. Brighton tinha ficado muito triste. Voltamos, no entanto, quando percebemos que, independentemente de onde morássemos, apenas carregávamos nossa tristeza conosco. Hoje em dia, porém, passamos grande parte do nosso tempo em Londres, em uma pequenina e escondida casinha rosa, onde somos especialmente felizes.

Esse aspecto de “esquecimento” do luto é algo que está apenas começando a vir à tona porque, bem, é difícil lembrar de não lembrar de algo. Tive uma longa conversa sobre isso com Warren enquanto dirigíamos entre as cidades na recente turnê. Parece que perdi um ano, mais ou menos, no qual fizemos seis trilhas sonoras seguidas, no pequeno estúdio que usamos em Ovingdean, com vista para o cemitério onde Arthur está enterrado.

Na velhice e com raiva

-eis a linha final da música. Acontece que essa linha não se provou verdadeira. À medida que Susie e eu envelhecemos, a raiva por causa da indiferença e crueldade casual deste mundo ainda está acesa, mas não nos define, pois o oxigênio que alimenta essa raiva é o amor — amor pelo mundo e amor pelas pessoas que nele habitam. O amor se torna o grande fomentador dessa raiva, como deve e como deveria ser.

Com amor,

Nick

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Sergio de Souza
Sergio de Souza

Written by Sergio de Souza

Trabalho com produção de conteúdo textual. Brinco de traduzir The Red Hand Files.

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