Lorenzo e Hitchens
Uma pequena crônica sobre um já quase esquecido debate
Monsenhor Lorenzo Albacete, padre e cientista falecido em 2014, especialista em evangelização por meio da cultura, foi convidado certa vez para um debate com o mais sofisticado e arguto dos ateus militantes, Christopher Hitchens. “A ciência tornou a fé em Deus obsoleta?”, seria o tema. Monsenhor Lorenzo, um erudito, autor de diversos artigos e livros, amigo de São João Paulo II, teve uma atuação comovente na ocasião, não por ter demonstrado de que modo se vence um debate, mas pela postura adotada diante de um intelectual do porte de Hitchens, um dos ateus mais influentes da história.
Hitchens foi uma espécie de Chesterton às avessas. Escritor brilhante e argumentador perspicaz, jornalista e crítico literário, era acostumado com os holofotes. Destacava-se por sua verve irônica e cruel, com a qual costumava demolir seus adversários (chamou Madre Teresa de “anjo do inferno”). Lorenzo Albacete surpreendia pela disposição ao diálogo ao aceitar ficar frente a frente com um homem assim.
Nos países com longa tradição neste tipo de conversação pública, não existe muito isso de “vencer” um debate. As disputas são antes oportunidades para o diálogo e a reflexão a respeito de temas relevantes e para abrir espaço para a discussão das questões levantadas. Nos EUA, por exemplo, se publicam livros e mais livros, frutos dos mais variados debates acerca de temas que ocupam a vida pública do país (uma eleição, por exemplo). Talvez Albacete tivesse isso em mente quando se propôs a aceitar aquele encontro. Foi surpreendido antes de surpreender. Mas só falaria sobre isso após a morte de Hitchens, que faleceu 2011, de câncer no esôfago.
Ao chegar ao local marcado para o debate, Monsenhor Lorenzo Albacete disse ter observado Hitchens fazendo sala com os convidados antes do evento começar e percebeu que não era o homem ideal para fazer frente ao mordaz escritor. Não que não se sentisse capaz de debater com ele, mas por ter percebido que Hitchens tinha o que ele chamou de um coração ferido.
Ele mesmo explica:
“Ele era um homem com um coração ferido, daqueles que estão há apenas um minuto de um encontro com Cristo. Ele precisava de graça, e aquilo era tudo que eu não podia oferecer, sendo eu mesmo um necessitado da graça em cada momento da minha vida.”
“Percebi que tudo o que podia fazer era mostrar que nós estávamos no mesmo caminho, porque eu não acreditava no deus que ele atacava, e assim encorajá-lo a ser fiel à ferida no seu coração e a amar a liberdade que vem da Verdade”.
Um padre que sabe tratar das almas.
Esta é uma autêntica postura cristã. Monsenhor Albacete não tinha interesse em vencer o debate, mas em fazer com que a Verdade entrasse em cena. Essa Verdade, tão precariamente compartilhada pelos cristãos — que precisam da graça o tempo todo — ele mesmo já conhecia e pressentia que seu oponente talvez também estivesse a um passo de abraçar. Quem sabe isso pudesse aplacar um pouco a sua sede. Christopher Hitchens, talvez debaixo de todo aquele vestuário irônico e intempestivo, tinha sede.
Lorenzo Albacete não usou um discurso atraente para convencer a plateia de que era um santinho humilde, mas reconheceu diante de Deus (era um homem obrigado a rezar diariamente) e do outro que era um pecador necessitado da graça, tanto quanto aquele ateu — talvez, sempre talvez — sedento do Infinito à sua frente. Era o método agostiniano das “Confissões”: viver conscientemente diante da Onisciência amorosa. Talvez o que faltasse a Hitchens fosse uma queda das defesas diante do “sentimento de uma presença”.
Lorenzo e Hitchens eram irmãos na condição de criaturas e de pecadores: estavam no mesmo caminho. Quando abaixamos a cabeça assim, enxergamos a face de Nosso Senhor. Lorenzo a viu. Esperamos que também Christopher a tenha contemplado um dia.
Monsenhor Lorenzo Albacete nos dá o testemunho de um verdadeiro evangelizador: firme, sincero, resoluto, e, ao mesmo tempo, cheio de compaixão, misericórdia e abertura ao próximo.
Quanto ao debate, que está no YouTube, dizem que foi uma das poucas vezes em que se viu o temido Hitchens um tanto perplexo diante de seu opositor. Monsenhor Albacete era um orador formidável e sabia apresentar a fé de modo cativante, e, claro, guiado pelas impressões que trazia no fundo do seu coração, deve ter tirado, ao menos um pouco, o foco do “antiteísta” Hitchens.
Como dissemos, não houve ganhador. Mas, de certa forma, Monsenhor Lourenço Albacete sabia que tinha perdido. Nem sua mística nem seus argumentos atingiram o espírito de Hitchens, que manteve sua posição niilista até o fim da vida, mesmo durante sua dura batalha contra o câncer.
Um cristão deve estar reconciliado com o fracasso. O fracasso cristão tem asas. Hitchens e Albacete têm certeza disso agora.