“Acquainted with night”, Lael Neale: a esperança que não dispensa a melancolia
Lael Neale gravou o álbum mais bucólico e delicadamente folk de 2021, só com instrumentos eletrônicos, ambiente lo-fi e apoiada em um brinquedinho chamado Omnichord (lançado em 1981 — tem todo o jeito de produto dos anos 80), um instrumento eletrônico originalmente construído para ser o substituto de uma harpa, mas que acabou virando uma espécie de brinquedo datado para fazer música que funciona com uma placa de toque e botões para os acordes maiores e menores.Toca-se o Omnichord pressionando os botões de acorde e passando os dedos sobre placa. O Omnichord é também uma máquina de ritmos.
Com essa eletrônica lo-fi substituindo os tradicionais instrumentos acústicos e a voz delicada de Neale, somos introduzidos no mundo cheio de poesia de “Acquainted With Night”. A poesia é sempre uma boa analogia para se falar da música de Neale, que tem uma certa obsessão na busca pelo essencial. Nem sempre, ou quase nunca, é fácil ser simples. E a poesia é uma destilação, é um constante desapegar-se do que supérfluo para ficar com o que tinha que ser, ou seja, a essência. A própria cantora o diz:
“este desafio de separar o que não é essencial é a parte mais enlouquecedora e, em última análise, recompensadora de escrever uma música”
O bucolismo e o o desejo de simplicidade se devem ao fato de Neale ter nascido e sido criada numa fazenda no interior da Virgínia. Depois, viveu por quase dez anos em Los Angeles. Talvez aqui entrem os motivos dos componentes eletrônicos (mais afeitos ao urbano) e a nostalgia do idílico. Neale chegou a realizar diversas gravações com instrumentação tradicional, mas nada a satisfazia . A formatação da simplicidade parecia se impor. Eis que nasce uma torrente de novas canções, Neale abraça o Omnichord e descobre um caminho. Nasce o novo álbum, gravado num gravador cassete de 4 canais (vai levar a sério o lo-fi e o minimalismo assim lá no interior da Virgínia…).
Vamos às faixas…
“Blue Vein” é o canto de quem nasceu para a música, destinado a cantar, com uma “veia azul” para a canção, vocacionado a compor. E ainda que alguns digam que a verdade brilha para os buscadores de plantão, o sujeito amaldiçoado com o dom da música sabe antes de tudo ouvir. E “a verdade canta para quem escuta”. É a única música do álbum na qual Neale toca guitarra (depois a guitarra se esconderá tanto em algumas canções que precisará ser procurada).
Em “Every Star Shivers in the Dark” Lael canta sobre o desejo profundo de amar: “Por que eu não posso amar alguém?” Ela sabe que “moldando o barro na escuridão que havia antes da aurora, Deus fez o homem para amar…”. O ritmo eletrônico precário e o timbre oitentista do Omnichord dão à canção um charme de arranjo de música de churrascaria que havia em alguns dos últimos álbuns de Leonard Cohen (especialmente “Old Ideas” e “Popular problems”). Mas a melodia acaba me remetendo imediatamente à Laura Marling de “Song for Our Daughter”.
Na belíssima “For No One For Now” Neale recorre novamente aos ritmos eletrônicos e aparece uma certa luz tênue, mas esperançosa. É uma canção quase pop, tanto quanto podem ser pop as canções tristes que Laura Marling escreveu para “Song for Our Daughter” (de novo). Lael fala de um novo dia em que está fazendo torradas na cozinha para ninguém, por enquanto… É realmente um novo dia e, na estrada, ela traça planos… Para ninguém, por enquanto. Mas há esperança de que ela possa derramar o seu amor sobre alguém. “De alguma forma, parece que você é real”, canta.
“Acquainted With Night”, a canção-título, é conduzida pela emulação da harpa no Omnichord. Aqui, Neale canta sobre despedidas e luto, quando se recorda de alguém que ela segurava e não deixava partir, acabou indo embora um dia. Brevíssima, a canção termina com o lamento: “Agora que você partiu… estarei de luto esta noite”.
“White wings” é uma música que beira o celestial (com sons de harpas novamente!); é quase um hino. E evoca um sentido espiritual ao clamar pela origem humana em algum lugar “antes do amor”:
“Onde você estava antes desse amor? Escuro e perigo, pó de carvão”.
Em “How far is it to the grave” tem-se a impressão de que o som de harpas tornou-se onipresente ( mas não incomoda). No mesmo estilo minimalista da canção anterior, repete-se o ambiente “sacro”. E aqui também Lael encara a finitude e a brevidade da vida numa perspectiva espiritual. Um verso-chave conduz um quase “memento-mori”: “A que distância fica o túmulo?”. E ela também nos introduz à perspectiva bíblica:
“A que distância fica o túmulo ?” / Perguntou o mestre a seu escravo / “Espero que não demore muito”, ele respondeu / “Na vida, estou morto, na morte, estarei livre / Espero que não demore muito"
Em “Sliding Doors & Warm Summer Roses” sopra uma flauta fantasmagórica sobre a cama feita pelo órgão. Lael Neale às vezes canta como as antigas cantores folk dos anos 60, arriscando-se mais nos agudos. Há uma guitarra tentando se esconder na mixagem. O mantra “I’m never lonesome” é acompanhado por um coro no final. Estamos na igreja de Lael Neale. A flauta se assanha, quer dançar. Mas a canção está terminando…
“Third floor window” talvez seja a canção mais simples do álbum e segue o esquema órgão-voz que permeia todo o trabalho. Novamente, Lael Neale está às voltas com temas muito humanos, entre eles a incomunicabilidade (“Por que dizemos palavras, mas nunca sabemos o significado?”), o estranhamento da existência (“O único estranho é você”), e o mal-estar diante do outro (“Por que temos vontade de cair de um carro diante de todo o mundo que não conhecemos, não é?”).
“Let Me Live By the Side of the Road” é quase uma vinheta de dois minutos. O clima de hino de Igreja volta: órgão, vozes. Se na vida de Lael Neale tudo fosse normal, poderia existir aqui uma canção pop. Mas definitivamente não é. Ela parece não querer ser mais uma cantora pop ou um docinho folk … Prefere continuar enterrando suas canções em camadas de ambientação etérea. Tem-se a impressão de haver incenso sagrado no pequeno estúdio que tornou-se o quarto onde gravou o disco (ela voltou para a casa de seus pais em meados de 2020). Na letra, ela pede: “Deixe-me morar na beira da estrada e ser amiga dos homens”… Homens que deixaram atrás de si “longas sombras”; homens que amaram, que choraram e deixaram “campos de flores em suas vidas”…
O álbum encerra com o máximo que poderia chegar perto de uma canção ensolarada (com o perdão do trocadilho), “Some sunny day”. De novo aparecem os ritmos eletrônicos, os timbres do Omnichord, mas também um dedilhado de guitarra. A letra abre caminhos para a esperança:
"Em algum dia de sol, vou acordar com
Nenhum aviso vindouro de tristeza
Sem naufrágio, sem arrependimento
Em alguma manhã ensolarada"
Que se diga: uma esperança que não dispensa a melancolia.
Lael Neale realizou um álbum belíssimo. Cheguei até o disco através das indicações do crítico musical Ted Gioia em seu twitter. Mesmo sabendo que dificilmente acontecerá, gostaria que muitas pessoas ouvissem e se deleitassem com esse pequeno conjunto canções reconfortantes como salmos: tão humanos e tão sagrados.