Judee Sill e Linda Perhacs: duas formas de reagir ao fracasso

Sergio de Souza
8 min readOct 3, 2022

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Judee Sill

Judee Sill era obcecada pela perfeição musical. Apaixonada pelo barroco de Bach e pelas canções tristonhas de Ray Charles, chegava a levar um ano inteiro para terminar uma composição. Talvez por isso só tenha gravado dois discos. Sua canção “The kiss” é considerada o ápice de sua produção. Jeff Tweedy, líder e cantor do Wilco, repete aos quatro ventos que é a música mais linda que já ouviu. Essa é também opinião de Andy Partridge, do XTC.

Sill é mais um típico caso de cantora que se ferrou na vida e só foi descoberta pelo público quando a nova geração de artistas indie dos anos 2000 a descobriu e retirou do limbo, como aconteceu com Bill Fay, por exemplo, e tantos outros.

Judee Sill é a típica menina deprimida e rebelde que viveu sua juventude na era dourada do rock — os últimos anos da década de 60 — e não teve estrutura para desenvolver sua potencialidade. Pior: não teve estrutura para continuar vivendo. Com uma sucessão de acontecimentos trágicos, como as mortes precoces do pai e do irmão, o fato de sua mãe alcoólatra ter se casado novamente com um cara autoritário que ela nunca aceitou, Judee Sill acabou abraçando o estilo de vida dos “jovens, rebeldes e drogados”, viciou-se na deslumbrante e venenosa heroína, e reza a lenda que chegou a se prostituir a troco de drogas.

Tendo sido presa, largou a droga no período do confinamento e aproveitou o tempo para compor. Era exímia instrumentista, dominando o violão e o piano. Saindo da cadeia, enturmou-se no meio musical e gravou seu primeiro disco, homônimo, em 1971.

Judee já havia sido presa aos 18 por roubo à mão armada e permaneceu na condicional por um tempo após comprometer-se a viver em um internato, onde tornou-se organista numa igreja, aprendeu o gospel tradicional americano e estudou arte. Após esse período de calmaria, sua mãe falece e ela afunda de vez na heroína.

A primeira canção que compôs (“Jesus Was a Cross Maker”), influenciada pelo famoso livro de Nikos Kazantzakis, “A última tentação de Cristo”, usa a tese de que Jesus, por ser um carpinteiro, fabricava cruzes para os condenados (a crucificação era uma pena comum). A canção era, na verdade, um lamento sobre um fim de relacionamento e essa frase-título foi usada como um chamariz. Graham Nash produziu o single. Não deu certo. Judee Sill continuava uma desconhecida. Nos anos 70, não fazer sucesso, e consequentemente, não vender discos, era uma espécie de maldição. Inúmeros foram os bons artistas que desistiram da carreira por conta disso. O Supertramp quase acabou dezenas de vezes por não vender muitos discos em sua fase inicial, superada após o estouro de “The Crime of The Century”. Alice Clark, uma maravilhosa cantora de soul music, que na minha opinião deveria figurar ao lado de Roberta Flack como uma das maiores do gênero, desistiu da carreira, amargurada, após gravar seu único álbum, homônimo, uma verdadeira pérola, de arrancar lágrimas dos olhos do homem mais empedernido. Clark morreu afastada da indústria musical, consumida por um câncer, em 2004, aos 57 anos.

O primeiro disco de Judee Sill é uma obra-prima de sensibilidade folk barroca, ponteada por canções country e tons acústicos. As letras sempre tinham algo de espiritual e místico. Recebeu boas críticas, Sill foi comparada a Laura Nyro e Joni Mitchell, abriu shows para Stills e Nash, entrou no circuito, mas não fez sucesso.

O segundo disco é ainda mais sofisticado, com cordas, metais, pedal steel guitar e a participação de lendas como o guitarrista do Wrecking Crew, Louie Shelton e o grande mestre do pedal steel, Spooner Oldhan.

“Heart food” é um álbum mais profundo e complexo, em todos os sentidos. “The kiss” é realmente uma obra-prima. Uma canção com uma aura etérea, uma cama climática de piano e a voz carregada de experiência de Judee Sill. É claro que “O Beijo” remete ao imaginário cristão de místicos como São Bernardo e Santa Teresa, que retomaram o Cântico dos Cânticos: “Beija-me com os beijos de sua boca…” Judee Sill continuava a almejar, ainda que confusamente, em que pese sua vida conturbada, vôos mais altos:

“Gonna wipe all your tears away”

Love risin’ from the mists
Promise me this and only this
Holy breath touchin’ me
Like a wind song
Sweet communion of a kiss…

“Vou enxugar todas as suas lágrimas”

Amor, ascendendo das brumas
Promete-me isto e apenas isto
Sopro bendito me tocando
Como uma canção do vento
A doce comunhão de um beijo

É, sem dúvida, uma canção religiosa. E o fato dela ter usado a palavra “comunhão”, significa muito.

“The Donor” é outra peça valiosa. Judee coloca um coro para cantar o “Kyrie Eleison”. É de arrepiar. Quando adolescente, eu achava que Renato Russo havia sido o primeiro a fazer isso em “Se fiquei esperando meu amor passar”. Renato era um cara bem antenado…

Em “The Pearl”, Still continua sua busca: “I’ve been lookin for someone who sells truth by the pound….”.

“When The Bridegroom Comes” evoca as imagens apocalípticas do Espírito e da Esposa, em uma melodia que é puro gospel.

Antes de lançar “Heart Food”, Judee Still faz uma viagem à Inglaterra para abrir caminho para o álbum e toca “The kiss” e “The Pearl” no programa de TV The Old Gray Whistle Test. Essa apresentação tornou-se lendária para seus fãs, porque durante muito tempo foi o único registro de uma aparição pública de Still executando sua música. Foi provavelmente durante essa viagem que ela retornou às drogas para nunca mais abandoná-las totalmente, até a overdose que a levou, em 1979.

O documentarista Brian Lindstrom, que está dirigindo um filme que deve estrear em 2022, “Soldier of the Heart: The Judee Sill”, deu um depoimento tocante sobre a viagem de Sill à Inglaterra:

“O que me impressiona assistindo ‘The Kiss’ no The Old Gray Whistle Test é aquele momento em que a música acaba de terminar, e o que está por vir para ela é o retorno à vida normal. E, claro, o vídeo é cortado antes de vermos isso. Mas, de muitas maneiras, acho que nosso filme está mostrando esse momento. O que você faz depois desses momentos transcendentais, onde a musa está com você e você alcançou essas alturas? O que se segue a isso? Como é viver uma vida cotidiana, com desafios e integridade e todas as outras coisas que enfrentamos, quando a música não está com você?”

De acordo com Rudger Safranski, para Nietzsche, filosofar é pensar no que fazer depois que a música acaba. O que fazer? Foi esse o drama da vida de Judee Sill que Lindstrom captou tão bem na apresentação no The Old Gray Whistle Test…

Muitos artistas não suportam o peso do sucesso. Judee Sill não suportou o peso do fracasso. Fracasso na música, fracasso na vida. Felizmente ela deixou uma trilha sonora para tudo o que viveu entre nós. Ouça “The kiss”. E acenda uma vela para Judee Sill hoje.

Linda Perhacs

Linda Perhacs é outra dessas singersongwriters de um álbum só que foram descobertas pelas gerações posteriores e voltaram a gravar (outra: Vashti Bunyan). Diferentemente de Sill, Linda Perhacs parecia uma jovem tranquila, que se formou em higiene dental, descobriu a música e gravou o assombrosamente belo “Parallelograms” enquanto exercia sua profissão.

Um paciente seu, o compositor e ganhador do Oscar, Leonard Rosenman (compôs as trilhas de “Juventude Transviada” e “Barry Lyndon”) , ouviu umas demos que ela havia gravado, ficou impressionado com a qualidade das composições e fez a proposta da produção de um álbum.

Linda Perhacs desmistifica o artista folk maldito e drogado. Neste sentido, ela é a antítese de Judee Sill. Quem ouve “Parallelograms”, pode jurar que está diante de um disco gravado por uma doidona, mas tudo é apenas fruto da alma criativa de Linda, uma jovem higienista dental que fez uma pausa na carreira para gravar um disco. A experiência da beleza faz expandir a consciência. Enquanto sua geração apelava para as drogas, Linda Perhacs fez música. Música divina. A música está ligada às esferas e é emprestada aos homens para que possam sonhar com o que está além do céu azul.

Não que o disco de estreia de Perhacs não seja riponga. É. Foi criada no coração da hippielândia, Topanga Canyon, em Los Angeles (onde, aliás, Judee Sill tirou a fotografia para a capa de seu primeiro álbum), e foi muito influenciado pela revolução cultural. Perhacs nunca usou drogas ilegais, mas deixou-se absorver pela fumaça venenosa dos anos 60 (que Joan Didion dissecou, sem interpretações e julgamentos, em seu magnífico ensaio/relato “Rastejando até Belém”). “Parallelograms” é uma pérola rara e delicada. Abre com a misteriosa e belíssima “Chimacum rain”, que evoca a presença da chuva que cai, lavando o silêncio da floresta e a sugestão do toque suave de um amante. A sonoridade de Perhacs é muitas vezes classificada como folk psicodélico e aqui dá para sentir o clima lisérgico envolvendo a canção. A voz de Linda é algo de magnífico. Envolvida por xilofones e wind chimes, dá a melhor carta de apresentação aos ouvintes. Não sei se Elisabeth Fraser, dos Cocteau Twins bebeu nesta fonte, mas eu poderia jurar que sim.

O álbum é extraordinário de ponta a ponta, mas eu gostaria de destacar a beleza sombria de “Hey, who really cares”, que é gêmea das pequenezas de Vashti Bunyan e o auge do disco, a canção homônima, “Parallelograms”. Ninguém poderia descrevê-la melhor que Andy Beta, em sua resenha para a Pitchfork:

“Talvez você possa fantasiar que Joni Mitchell ensina pintura e cerâmica em sua escola, ou que Chan Marshall (Cat Power) resmunga sobre os poetas do Apocalipse durante suas aulas de inglês, mas Perhacs ensinando geometria é mais tantricamente atraente para uma professora. Apenas escutar “Quadrehederal / Tetrahedral / mono-cyclo-cyber-cilia” é sentir a dor de não estar presente quando ela e o produtor Leonard Rosenman assentaram com presteza as ondas de seu canto celestial em círculos concêntricos sobre um tema criado por um toque cíclico de violão, gerando um efeito cumulativo que revela uma dimensão dificilmente já alcançada em qualquer outro lugar no mundo da música. Mais perto das Vozes Misteriosas da Bulgária ou “auto-coro” (formado por suas “próprias vozes” ) de Tim Buckley do que de Melanie ou Linda Ronstadt, Perhacs nos joga em nuvens flutuantes de sinos reverberantes, ecos de flauta, climas fantasmagóricos e sua voz transcendente. Que uma assistente de dentista no norte da Califórnia pudesse transmitir a experiência psicodélica por meio do uso da tecnologia de efeitos experimentais com mais eficácia do que o Pink Floyd de Syd Barret, o Fifty-Foot Hose, ou as iluminações eletroacústicas de Buffy Saint-Marie, é, com tudo o que significa o clichê do uso da palavra, alucinante.”

Quando “Parallelograms” foi finalizado, todo o staff que trabalhou na produção, era unânime: estavam diante uma obra-prima. Mas era música, sem apelo comercial ou fórmulas fáceis para o sucesso. Perhacs não iria deixar sua rotina por nada além da música. E era rígida consigo: “Eu mesma só aguentei ouvir o disco uma vez. Em seguida, joguei fora minha própria cópia”. A gravadora não divulgou, nem distribuiu. Linda Perhacs continuou na obscuridade até que “Parallelograms” fosse redescoberto por artistas como Julian Holten, Devendra Banhart e pela banda de death metal progressivo Opeth, já no século seguinte.

Perhacs voltou a gravar em 2014, mas isso já é assunto para outra conversa.

Se você acender uma vela para Judee Sill, faça também uma oração por Linda Perhacs, para que ela saiba que além do chamado do rio há um Outro que chama.

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Sergio de Souza
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Written by Sergio de Souza

Trabalho com produção de conteúdo textual. Brinco de traduzir The Red Hand Files.

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