Graça e pecado: encontros e desencontros
Apontamentos sobre a leitura de “O Poder e a Glória” de Graham Greene
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Na década de 30, Graham Greene cobriu a perseguição religiosa e anticlerical no México revolucionário. A aventura rendeu o livro-reportagem, “The Lawless roads” e “O Poder e a Glória”, um dos mais lidos romances escritos em inglês no século XX. Foi “O Poder e a Glória” que deu a Greene a fama de grande escritor. A ficção consegue transmitir a experiência da realidade de forma mais límpida do que o jornalismo. Ao contrário do que muitos pensam, sem imaginação não se chega a conhecer o real. “O Poder e a Glória” deu também a Greene, católico, certa fama de maldito, por ter sido condenado pelo Vaticano. Greene expôs as fraquezas e os vícios dos sacerdotes de forma impiedosa.
O livro conta a história de um padre beberrão perseguido pela revolução, com a cabeça posta a prêmio, que, numa aventura sexual, teve uma filha, chamada por ele de “resultado de um crime”. O padre, anônimo, vive dominado por um terrível remorso por conta da sombra desse pecado — a quebra do celibato — que o persegue e não o deixa saber o que é a paz.
Se os padres de Bernanos exalam santidade(vide seu pároco de aldeia: um santo que não sabe que o é…), o padre de Graham Greene fede a álcool — só o álcool pode fazê-lo suportar o peso da culpa que o atormenta. Anda de povoado em povoado colocando a vida em risco, tentando conseguir vinho para celebrar missas clandestinas e algum aguardente que alivie sua consciência, mas carrega uma culpa tão terrível que não o deixa acreditar na possibilidade do perdão divino, porque, segundo ele, ama o fruto do pecado (sua filha).
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Todos os padres haviam fugido. Ele dava a “absolvição de Deus” a todas as pessoas e não tinha com quem se confessar. O outro clérigo remanescente, o Padre José, vendido à revolução, casou-se (uma lei os obrigava a casar) e o desprezava absolutamente. E mesmo que conseguisse se confessar, o peso na alma era tanto que o fazia exclamar: “De que serviria a confissão quando a gente amava o resultado do crime?” (pg. 226)
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Max Scheller, filósofo católico, ao ser interpelado por um bispo por sua justa fama de mulherengo, respondeu: o poste mostra a estrada, mas não caminha por ela. O padre de Greene é tudo, menos um poste. Ele não para. Impulsionado pela angústia de sua fé, por seu catolicismo agonizante, caminha, de aldeia em aldeia, em busca de uma redenção em que ele mesmo parece desacreditar.
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O padre de Greene é o protótipo do homem de vida dupla. Iluminado pela verdade, mas puxado para baixo pelo instinto, homem rasgado ao meio pela contradição, como todos nós, os não-santos, como cada homem comum, habitante do purgatório, mendigo do paraíso, que só a graça pode resgatar. Corre, para alcançar o abismo da liberdade (uma liberdade na qual sua consciência não pode deixar de perceber um simulacro), mas retorna para atender moribundos necessitados de salvação. Está acorrentado pela fé, embora se considere um traidor.
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O tema de “O Poder e a Glória” é a miséria profunda da condição humana. Revela nosso o terrificante infortúnio e, ao mesmo tempo, a possibilidade da redenção, quase oculta, mas sempre presente.
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“Colocar a Deus na boca de um fiel.” Eis a vocação do sacerdote.
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“O Poder e a Glória” é um livro de cenas fortes que ilustram a desgraça da condição do homem decaído entregue a si mesmo (mesmo que este seja um escolhido):
A cena em que o padre, faminto, disputa um pedaço de carne que sobrara de um osso com uma cadela moribunda. Miséria moral e miséria material se atracam. O homem destituído de espiritualidade pode se tornar mais animalesco que um cão.
A cena da prisão do padre, por bebedeira. Em uma cela sem luz, sem reconhecer a ninguém, na escuridão, onde todos defecam e urinam em baldes ao ar livre e um casal faz sexo, entre grunhidos e gemidos, o padre desce mais um degrau em direção ao inferno.
Noutra cena, o padre, em um encontro com o homem que podia ser o seu algoz (o tenente que o perseguia) parece ter perdido a esperança de conseguir encontrar outro sacerdote e faz uma espécie de confissão ao tenente, desnudando a sua alma com comovente sinceridade diante de seu inimigo. Quando estamos com as entranhas cheias de veneno e não temos com quem nos confessar, acabamos por vomitar nossas impurezas diante de quem nos empresta o ouvido, ainda que seja nosso pior inimigo. Melhor é morrer tendo se arrependido e confessado do que carregar para o além o veneno deste mundo.
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Se a filha do padre é chamada de “resultado de um crime”, também é a única que consegue despertar alguma ternura. A lembrança da menina causa-lhe um sentimento dúbio: traz a memória do amor, mas faz com que afunde ainda mais no remorso do pecado mortal:
“Era essa espécie de amor que ele deveria sentir por todas as almas deste mundo: todo o medo, todo o desejo de salvar concentrava-se injustamente numa só criança. Pôs-se a soluçar; era como se tivesse de vê-la afogar-se, parado à margem, porque havia esquecido como se nadava. Era isto, pensou, que eu devia sempre sentido por toda a gente, e tentou voltar o espírito para o mestiço, para o tenente, até mesmo para um dentista com quem passara alguns minutos, para a menina do Entreposto de Bananas, evocando uma longa sucessão de faces, que vinha de encontro à sua atenção, como se se tratasse de uma porta emperrada. Pois aquêles também estavam em perigo. — Ajudai-os, senhor! — Mas, durante a oração, voltou a pensar na filha junto ao monturo, e reconheceu que era só por ela que estava rezando. Mais um fracasso.” (pg. 268)
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Enquanto lia “O Poder e a Glória”, tive a sorte de assistir também ao filme “Deuses e Homens”, de Xavier Beauvois, baseado em fatos reais, onde monges trapistas que vivem em uma comunidade muçulmana em tempo de conflito, recusam-se a abandonar o povo a quem servem, tornando-se mártires. Os monges mergulham em vários e profundos dilemas morais até chegarem à entrega final. No romance de Greene, o padre é colocado várias vezes na posição de mártir, mas a lembrança de seu pecado avassala sua alma. Ele não é um mártir, é um desesperançado que se recusa a deixar de crer:
“Não sei absolutamente nada da misericórdia divina. Não sei em que medida o coração humano aparece a Deus como um objeto de horror. Mas uma coisa eu sei: que se um único homem aqui nesta província perder a alma, eu também estarei condenado. — E acrescentou pausadamente: — Nem desejaria que fosse de outro modo. Só quero justiça, e nada mais.” (pg 257)
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Em “O Poder e a Glória” o mergulho o coração das trevas é tão profundo que quando acaba a leitura, você só tem vontade de fazer uma coisa: confessar.
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“Sabia agora que, no fim, apenas uma coisa contava: ser santo.” (pg 271)
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Dedico as palavras desta pobre meditação a Karleno Bocarro, mais do que um grande romancista, uma grande alma, que me apresentou à literatura de Graham Greene e a este soberbo romance , “O Poder e a Glória”.