Cruzando pontes…

Sergio de Souza
6 min readAug 12, 2020

--

“Crossing Bridges” (Prime Video), Sange Dorjee Thongdok , 2013

Especula-se que uma provável tendência dos tempos pós-covídicos será o retorno das cidades para o interior. As pessoas procurarão as pequenas e médias cidades em busca de tranqüilidade depois dos tão difíceis tempos pandêmicos, com medo de contaminação ou de novas pandemias, em busca de segurança econômica ou para fugir da violência. Em “Crossing Bridges” (Prime Video), filme indiano de 2013 dirigido por Sange Dorjee Thongdok o movimento de retorno ao interior acontece não por causa de um vírus: na Índia, um homem de trinta e poucos anos perde o emprego de web-designer na cidade e se vê obrigado a retornar para a casa dos pais, numa pequena aldeia rural, sem luz, televisão ou celular. Obviamente, para Tashi, o protagonista, acontece o famoso choque cultural de quem migra da cidade grande tomada pela civilização tecnológica para um interior ainda precário e rural. A estranheza da Tashi é simbolizada por seu desgosto pelo “butter tea” , o chá de manteiga, típico das regiões do Himalaia. no Nepal, Butão, Índia e Tibete. Depois de anos, Tashi vê-se obrigado a permanecer por mais tempo no povoado, uma vez que seu contato na cidade não consegue logo um novo emprego, e aos poucos, o protagonista vai adentrando o cotidiano da pequena aldeia e redescobrindo suas raízes, que até então não havia experimentado com profundidade. Tashi começa a experimentar a surpreendente sensação de ser um estranho em sua própria terra, que é uma condição esquisita e ao mesmo tempo fascinante. Chesterton descreveu bem este sentimento no início de “Ortodoxia”: “O que poderia ser mais agradável do que ter nos mesmos poucos minutos todos os terrores fascinantes de ir ao estrangeiro combinados com toda a segurança humana de voltar para casa de novo?
Parece-me que esse é principal problema dos filósofos e, de uma certa forma, o principal problema deste livro. Como podemos fazer para nos admirarmos do mundo e ao mesmo tempo nos sentir em casa nele? Como esta cidadezinha cósmica, com seus cidadãos cheios de pernas, com suas luzes monstruosas e antigas, como este mundo pode nos oferecer a fascinação de uma cidade estranha e o conforto e a honra de ser nossa própria cidade?”

***

O filme de Thondok é rodado no dialeto do grupo étnico chamado Shertukpen , de Arunachal Pradesh, um dos estados da Índia, e vai fundo no registro da precariedade (falta de emprego e estrutura , ausência dos confortos e comodidades da modernidade) e da natureza um tanto inóspita da região. A aldeiazinha parece um pedaço de um passado muito distante encravado na aldeia global moderna. Tashi, representante do homem da cidade, traz o celular, as sandálias, a televisão, o laptop e a camiseta “Puma”…

A princípio, um Tashi entediado busca uma TV para passar o tempo. Ironicamente, seu pai — que sempre o repreendia por perder tempo com a TV, fica fascinado, a ponto de trocar o “butter tea” com a esposa pelo viciante entretenimento. Tashi, por sua vez, vai aos poucos abandonando a tecnologia para se reaproximar da mãe, senta-se para tomar chá, envolve-se nas tarefas domésticas e no pequeno cotidiano local …

Interessante é que também há atualmente no cinema uma onda de filmes de “retorno ao lar”; ou de retorno da grande cidade para o interior (algumas animações do estúdio Ghibli têm esta tendência). Aqui, no entanto, o diretor faz questão de cortar na raiz a tendência de conferir uma aura paradisíaca ao interior. Além do já citado estranhamento cultural, a aldeiazinha é retratada com crueza: os habitantes são pobres, trabalham duro, a natureza não é abundante, há muito frio (geada e neve) e poucas cores. Mas o que mais corrói a alma dos habitantes da vila é o mesmo que a corrói na metrópole: a falta se sentido. Há uma cena na qual um amigo de Tashi descreve a rotina dos habitantes: aqui a gente acorda, trabalha muito nas fazendas ou fazendo estradas , come, dorme e no dia seguinte começa tudo de novo; somos como o gado, o boi e a vaca…

O estranhamento que Tashi sente talvez seja o sinal de uma vocação cujo sinal mais visível é a inconformação pessoal com a ordem das coisas que se estabeleceu na comunidade. Tashi sai da aldeia em busca de algo que fosse maior não somente do que a aldeia e sua falta de oportunidades, mas atrás de algo maior do que ele mesmo, que desse sentido à sua jornada. E embora soubesse que talvez tivesse que voltar um dia — ou retornar regularmente — para cuidar e rever os pais, já estava inevitavelmente marcado pela necessidade de não viver a vida medíocre que o lugarejo lhe reservava. Se o movimento de retorno ao interior foi necessário, o movimento contrário (que, por exemplo, os hobbits foram obrigados a fazer na saga de O Senhor dos Anéis): sair da acomodação do interior para salvar o mundo (no caso de Tashi, para salvar os seus próprios dias de uma existência medíocre), também estava, inexoravelmente, em curso.

Esse é o impulso que faz Tashi buscar sentido no meio da nova rotina. Em vez de render-se aos conselhos e apelos dos amigos e dos aldeões de ir trabalhar nas fazendas ou construindo estradas, arruma um emprego de professor substituto em um colégio. Aqui entra valor transcendente da vocação e de cada pequeno gesto que ela encerra. O protagonista irá encontrar sentido no (irrealizável) amor por uma mulher, Anila, professora substituta como ele, que o ajuda a “atravessar as pontes” : dar aulas, levar diversão e cultura para as crianças (passa “O Garoto”, de Chaplin, no laptop para os alunos). Anila, observando o desempenho do novo professor, como boa pedagoga, aponta um possível futuro: “Fique aqui. Não volte. Você deveria ficar aqui. Você é bom para as crianças”.

Tashi e Anila

A cena mais bonita do filme é uma espécie de epifania que se dá quando Tashi acompanha a mãe ao rio para uma lavagem de roupas. Enquanto a mãe o observa, Tashi, de pés descalços e deixando-se banhar tanto pelo rio (que leva embora suas sandálias, tão cobiçadas pelo pai, parecendo significar que ele mão mais precisaria delas para caminhar para longe dali) quanto pela luz do sol que atravessa a mão de Tashi, cujos dedos dançam no ar, enquanto a câmera ( o filme foi feito totalmente com uma câmera Canon 5D, que confere uma beleza sutil e bem singular às cenas) passeia pela paisagem do local, mostrando pela primeira vez que aquele lugarejo perdido nas montanhas da Índia também era perpassado pela beleza). A cena parece marcar uma reconciliação de Tashi com sua terra. E é indício de uma transformação…

As pontes que Tashi atravessa, levado pelas mãos por Anila e pelos profundos efeitos que a estadia no povoado, o contato com a cultura e a história locais, acabam por produzir uma reconsideração sobre suas opções de vida. O simbolismo da travessia de pontes, que aponta o rito de passagem sofrido pelo protagonista, é muito significativo durante todo o desenvolvimento da trama.

O filme tem forte cunho pessoal. Sange Dorjee fez do filme um registro dos dramas de sua geração, que precisou sair de casa para estudar e trabalhar pela falta de infra-estrutura local e depois enfrentou a árdua tarefa de retornar para a arcaica cultura da região. A película tem um interessante ritmo contemplativo: Dorjee filma sua terra com evidente crueza, mas com um afeto comovente e sem julgamentos. É um olhar amoroso-contemplativo que não julga, apenas mostra. Não quer pregar sobre a conveniência de um retorno ao campo ou das vantagens da cidade. Isso confere uma beleza da qual não se consegue escpar. E, óbvio, quem canta sua aldeia, canta o mundo inteiro. O filme foi inteiramente financiado pelo pai do diretor, que o achava importante para a comunidade. Encontrei-o enquanto buscava filmes de Jim Jarmush no catálogo do Prime Vídeo. E de fato acho que há um link, sobretudo com “ Estranhos no paraíso”. Um achado.

--

--

Sergio de Souza
Sergio de Souza

Written by Sergio de Souza

Trabalho com produção de conteúdo textual. Brinco de traduzir The Red Hand Files.

No responses yet