Como continuar com a vida ?
3 min readDec 5, 2020
Resposta de Nick Cave para a questão 126 em The Red Hand Files
(tradução: Sérgio de Souza)
Olá. Primeiro, quero dizer que gosto muito de sua música. Perdi minha linda esposa com câncer e meu querido irmão com covid-19. Minha pergunta para você é: como continuar depois de perder seu filho? As vezes é difícil continuar com a vida...
MATTI, ESTOCOLMO, SUÉCIA
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Caro Matti,
Há pouco a se dizer que se configure como uma ajuda real para alguém que perdeu um ente querido. Essa tem sido minha experiência. A linguagem fica aquém da imensidão da experiência do luto. Simplesmente não existem palavras. Amigos bem-intencionados e agoniados, preocuparam-se em penetrar com palavras a minha dor, usando termos que não faziam sentido. Diziam-me que meu filho morava agora em meu coração, por exemplo, mas eu realmente não entendia; porque, quando sondei meu coração, não encontrei nada além de caos e desespero.Porém, em uma manhã, tomado pelo desespero, fiz a coisa mais simples, que talvez também possa ajudá-lo com a perda de sua esposa e de seu irmão, mais do que ajudariam as minhas palavras. Sentei-me sozinho, em um espaço silencioso, e chamei meu filho pelo nome. Fechei os olhos e imaginei-me tirando-o do coração - esse lugar atormentado no qual disseram-me que ele vivia - e posicionei-o fora do meu corpo, perto de mim, ao meu lado. Eu disse: “Você é meu filho e agora está ao meu lado”. Essas poucas palavras vibraram poderosamente, e esse simples exercício de imaginação foi o primeiro passo em um processo que acabaria me levando de volta ao mundo. Ao realizá-lo, fui temporariamente liberado do mundo racional, um lugar impiedoso que não me trazia paz, e recebi acesso a um reino maravilhoso, onde poderia estabelecer um relacionamento cada vez mais autêntico com a idéia espiritual de meu filho perdido.Comecei a sentir a presença de Arthur. Falei com ele. Ele falou comigo. O levava comigo aonde quer que fosse. Fiz uma turnê pela Europa e América com o show ‘In Conversations’ e ele sentou-se comigo no meu camarim, ou mais tarde à noite no meu hotel, ou ele me acompanhou até o palco e ficou lá ao meu lado. Senti-me encorajado por sua presença construída, ou talvez presença verdadeira - quem sabe? O que isso importa? Eu me senti cada vez mais fortalecido, sem medo, enquanto permitia que ele me acompanhasse para fora da minha dor sem limites. Às vezes, no palco, eu olhava para o público e sentia uma influência espiritual coletiva atendendo a todos. Foi uma experiência profundamente poderosa e um testemunho da força restauradora de nossa imaginação - aquele filho de Deus, aquela invenção divina - resgatando-me do meu catastrófico coração e, ao fazê-lo, libertando-me da minha dor convulsiva.Matti, perdoe-me se isso não fizer sentido para você, mas talvez haja uma maneira de convocar sua esposa e seu querido irmão, libertá-los do seu desespero para que possam cuidar de você - permita que se tornem seus companheiros espirituais naquele reino impossível , para cuidar de você em sua presença imaginária e guiá-lo até que as coisas melhorem. Pois eles fazem, com o tempo, eles fazem.
Com amor,Nick