As cinzas de um reveillon

Sergio de Souza
2 min readJan 1, 2021

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Meu reveillon começou em 10 de abril, quando não tinha dinheiro pra comprar um cigarro e vi nos jornais que a carne ia aumentar. Ali senti que o ano começara a findar, tropecei num jornal velho, a única coisa que ia poder ler durante o trajeto do ônibus. Talvez só eu ainda leia jornal neste fim de mundo melancólico… O caso é que meu celular estava sem carga e eu precisava de algo para distrair a mente. Dormir, nem pensar. No jornal, manchetes novinhas com notícias de acontecimentos que se arrastavam desde o ano passado. Envolvimento de senadores e deputados em rachadinhas, conversas vazadas nos porões do poder, etc. Esse ano não vai ter disco no Leonard Cohen, meu reveillon começou ali: que ano de merda. Vão lançar um romance inacabado de Philip Roth. Eis um livro que não colocaria na minha lista de melhores do ano. Detesto material póstumo, que não deveria ter sido lançado. Há cadernos importantes, e por isso mesmo devem ser queimados. Maldito Max Brod. Eu prometo a mim mesmo queimar qualquer resquício desse ano desgraçado. Mentira: eu minto para mim mesmo. Eis-me no último dia de dezembro, catando vestígios de abril para que alguma lembrança desse ano que já esteve em chamas, queimado, acabado, e cujas cinzas já começam a pousar sobre as primeiras horas de 2021, sobrevivam. E eu aqui acordado, precisando do remédio para refluxo que esqueci de comprar. Talvez acenda mais um cigarro para que o ano comece também com cinzas produzidas pelo meu hálito cansado. Primeiro dia do ano. Os pássaros já cantam anunciando a manhã que chega lenta. Pela janela, a horta exala o manjericão. Também há o som distante de um violão. Talvez um vizinho tenha resolvido estender a festa. Talvez seja a Alexa, que esqueci ligada, tocando Simon and Garfunkel: “Hello, darkness, my old friend…”

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Sergio de Souza
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Written by Sergio de Souza

Trabalho com produção de conteúdo textual. Brinco de traduzir The Red Hand Files.

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