Ansiedade e contemplação
Você já se pegou sentindo ansiedade acerca de eventos que seriam normalmente corriqueiros e não deveriam produzir a mínima apreensão? Já percebeu que, passados tais eventos, podendo observá-los com a tranquilidade que as coisas passadas produzem (afinal, você já passou por elas e o efeito esperado não veio), a ansiedade estava mais na sua mente do que nos fatos e na realidade? Você já notou sua mente “buscando” ficar ansiosa mesmo nos dias em que tudo está bem (como se neste tempo pandêmico isso fosse possível …) ?
Tenho notado, em mim e ao meu redor, que esses disparos de ansiedade são mais comuns do que imaginamos. E fiquei pensando, mais uma vez, que a via da contemplação pode ser uma possibilidade para trabalharmos essas projeções ansiosas que nos assombram. Pode parecer incrível, mas o primeiro passo para que a ansiedade não mais fuja do nosso controle e acabe por nos controlar, é aprender a conviver com ela. Isso tem muito a ver com aquela ardente paciência que ensina-nos a conviver com o joio até que chegue o dia da colheita, na famosa parábola evangélica. Nesse sentido, a contemplação é um excelente caminho, porque permite-nos olhar as coisas como elas são e olhá-las como elas são é saber que, na verdade, elas ultrapassam o que são porque não têm o ser em si mesmas, mas “são” por participação no Ser e tudo o que são apontam para além de si: para o Ser, do qual tudo procede, o Criador, a quem chamamos Deus.
A contemplação devolve-nos um olhar original que permite que enxerguemos as coisas assim. Porque o nosso tempo é um tempo de grandes e graves acontecimentos e sobre ele projetamos nossos medos e ânsias, além de nossa imaginação afetada pelas mentalidades ideológicas que nos assolam. Assim, a realidade pode apresentar-se monstruosamente maior e mais assustadora do que realmente é (porque de fato a realidade é assustadora, mas também é espantosa, maravilhosa e misteriosa, e isso tudo se dirige à contemplação).
A contemplação primeiro nos devolve às coisas mesmas. Como dizia Husserl: “ir ao encontro das coisas em si mesmas”. E aqui lembramos a fala de Adélia Prado: “De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo.”. Essa “retirada da poesia” faz parte do processo contemplativo. Antes da contemplação poética e espiritual, somos mergulhados no mundo das coisas em sua crueza e simplicidade: olhamos para a pedra e vemos pedra. Como no verso de Gertrude Stein: uma rosa é uma é uma rosa… O olhar para as coisas e para os acontecimentos em sua simplicidade e nudez é um retorno das projeções para o chão da realidade. É a partir deste chão, deste olhar “pé-no-chão”, que o olhar contemplativo consegue começar a perscrutar as coisas e os fatos naquilo que eles significam para além de si mesmos. Se não chegamos a enxergar o “si mesmo” das coisas, como poderíamos investigar para onde apontam, para a sua dimensão simbólica, se é esse “si mesmo” que sinalizam um além?
É quando não olha para esse “si mesmo” das coisas que um ansioso olha para uma pedra e enxerga nela uma montanha que interdita seu caminho e o paralisa, impedindo-o de prosseguir.
É quando não olha para esse “si mesmo” das coisas que um militante enxerga na pedra uma arma que um ativista de direita ou de esquerda usará para iniciar uma revolução. E sentirá raiva das pessoas de direita ou de esquerda, deste ou daquele partido, adepto desta ou daquela personalidade política, que pegam em pedras para derrubar adversários.
E é quando olha para as coisas “em si mesmas” que um poeta olha para uma pedra, e enxerga que “No meio do caminho tinha uma pedra / Tinha uma pedra no meio do caminho” e sabe que “nunca se esquecerá desse acontecimento na vida de suas retinas tão fatigadas”. São as retinas fatigadas dos acontecimentos de todo os dias que enxergam, na visão poética e contemplativa das pedras e dos galos que tecem manhãs, que uma pedra, um galo, uma bailarina, a chuva ou um rio são coisas que significam mais do que pedras, galos, manhãs, bailarinas, chuvas ou rios.
É quando olha para as coisas “em si mesmas” que o místico usa toda a “pedridade” da pedra para recostar sobre ela a sua cabeça e sonhar com a escada que é a via dos anjos que transitam entre céu e terra e desta mesma pedra faz um altar, ungida com o óleo do Senhor. Pedra-Betel, porta do céu. A pedra que é pedra em toda a sua materialidade de pedra-travesseiro , também é pedra ungida, consagrada para erguer o templo do Senhor sobre a terra.
A via contemplativa, que Raïssa Maritain chamava de “contemplação nos caminhos do mundo”, simplíssima em sua complexidade, pode ser abraçada por qualquer pessoa, e pode nos elevar aos mais altos patamares das contemplações mística e artística, também pode conduzir-nos a um mundo muito mais amplo, diverso e profundo do que daquele ao qual a nossa ansiedade e vícios ideológicos de cada dia (todos os temos) querem nos aprisionar, o mundo das projeções, que é uma prisão.
Voltemos às coisas mesmas para que elas nos possam levar além.