A voz do silêncio
Por que, trinta anos depois, o clássico dos Cowboy Junkies ainda emociona tanto? Um texto escrito há 5 anos tenta responder…
A voz tristonha de Margo Timmins entoando lamentos country acompanhada da guitarra errática de seu irmão, Michael, faz de “The Trinity Sessions”, álbum clássico dos Cowboy Junkies, marco do fim dos 80. Usando um único microfone “ambisonic”, com a banda tocando ao vivo dentro da Holy Trinity Church, em Toronto, Canadá, conseguiram um incrível efeito ao combinar country de raiz com pitadas de blues, jazz e indie rock, gravados de forma crua, mas elegantemente suave. Uma sonoridade doce e fantasmagórica, combinando a rara e plácida beleza da voz de Margo com instrumentos tradicionais da country music (acordeon, harmônica, pedal steel, bandolin, etc) e a já citada guitarra de Michael Timmins, compositor com a sensibilidade exata para captar parábolas de corações partidos.
Na cena musical daquele período havia grandes vozes. Liz Frazer (renascida com “Heaven or Las Vegas”), Harriet Wheeler, Hope Sandoval, Bjork (a garota sugarcube que emitia gritinhos semi-orgásticos e fez Ian McCulloch considerar “Birthday” a segunda maior canção de todos os tempos; atrás de “The Killing Moon”, é claro…). Margo era a mais tímida de todas, parecendo não estar à vontade no front, mas repleta de carisma e personalidade. Seu canto emergia de uma zona saturada de dor. Às vezes parecia mais estar sussurrando segredos do que cantando. Em “Mining for gold”, abrindo o álbum a capella (termo que se refere justamente ao canto litúrgico dos monges, sem acompanhamento instrumental), aquela voz ecoando na cúpula daquela igreja, evocando cânticos spiritual dos negros afro-americanos, é de causar calafrios na espinha de qualquer indivíduo com um mínimo de sensibilidade.
Você percebe que está em um ambiente diferente. Eco. Ambiências. O som que bate naquelas paredes sagradas e volta para os seus ouvidos é novo. E muito antigo. É como se os Cowboys Junkies fossem, em termos musicais, neo-tradicionalistas. Evocam a tradição do cancioneiro popular americano, mas tocam com alma nova. Assim é “The Trinity Sessions”.
A seguir, “Misguided Angel” começa a mostrar a verve poético-musical de Michael. Um clássico dos Junkies, cheio de brilho espiritual e ternura. A harmônica chora, o acordeon chora, chora o mandolin, chora Margo Timmins: “Misguided angel hangin’ over me / Heart like a gabriel, pure and white as ivory / Soul like a lucifer, black and cold lmike a piece of lead / Misguided angel, love you ’til I’m dead”.
“Não entregue sua alma à tristeza”, reza o Eclesiastes. Tente resistir a esta tentação tendo o álbum dos Junkies nas mãos…
Em “Blue moon revisited” o fantasma de Elvis sobrevoa a Holy Trinity Church e assombra Margo Timmins. Ela não precisa cantar sobre perdas e abandono para soar desesperadamente triste. Mas canta mesmo assim… Esta canção poderia tranquilamente figurar na trilha sonora da série “Twin Peaks”, de David Lynch, criada por Angelo Badalamenti e Juilee Cruise (outra grande voz daquele período), envolta em mistério e climas cinqüentistas.
Uma gaita que atravessa nervosamente o clima suave do álbum anuncia o blues “I don’t get it”. A letra, que começa dizendo: “Breaking away to the other side…” (uma referência a “Break on through” ?) e o instrumental que lembra os blues de “L.A. Woman”, traz-nos à mente os Doors. Apesar de tudo, é suave. O som dos Cowboy Junkies é quase sempre suave.
Uma versão dark de “I’m So Lonesome I Could Cry” (Hank Willians) permite-nos entender porque a guitarra de Michael pode ser chamada errática. Talvez nisso esteja seu maior charme. E Margo Timmins canta como se Hank Willians nunca tivesse feito essa música; como se fosse ela, só ela, a inundar o mundo de lágrimas por causa da partida de seu amor.
Em “To Love is to bury” apresentam-se, um por vez, sobre a guitarra seca de Michael, o acordeon, o violino e o pedal steel (essa guitarra tão atmosférica que vai emoldurando o country, encharcando-o de beleza). A letra diz: “I buried him down by the river / ’Cause that’s where he liked to be / And every night when the moon is high / I go there and weep openly”. Sepultar também é amar; viver é organizar o luto. Mais lágrimas. Margo Timmins se derrama calmamente. Ela é a anti-Janis Joplin, também afogada nas raízes da música negra (blues) ou branca (country) que a América lhe deixou como herança. Os canadenses costumam fazer bom uso desse rastro. Neil Young que o diga.
“200 more Miles” é uma road song pontuada pela harmônica e pelo pedal steel. Margo mais uma vez dá voz à esperança torta de Michael: “I’ve got 200 more miles of rain asphalt and light before I sleep. But there’ll be no warm sheets or welcoming arms to fall into tonight”. Voltar para casa sempre traz uma sensação de segurança, mas quando não se tem braços acolhedores esperando, até a segurança de um lar pode ser solitária e triste.
“Dreaming my dreams with you” é uma versão Junkie para a canção de Allen Reynolds. Abre espaço para certos exercícios guitarrísticos um tanto toscos de Michael. Um arranjo simples e seco. Margo continua sua peregrinação: “I hope that I find what I’m reaching for…”.
“Working on a Building” traz um arranjo para uma canção tradicional. Muito popular na tradição gospel e spiritual afro-americana, aqui ela ganha uma versão em que se destacam novamente as incursões tortas da guitarra de Michael. Os Cowboy Junkies mantém os pés fincados na tradição americana e então é inevitável aproximarem-se da espiritualidade sulista dos E.U.A.: “I’m going up to heaven oh yeah, to get my reward”.
“Sweet Jane” é o pior momento do álbum. Destaco que aqui entra meu gosto pessoal. Nunca gostei da versão original. É uma música para lá de pobre. Com todo o respeito a Lou Reed, que é dono de uma obra extraordinária, que recentemente beirou a morte, tendo que passar por um transplante de fígado. A versão dos Junkies não acrescenta muito à pobreza original.
“Postcard Blues” é daqueles blues que Nick Cave gravaria: soturno, sombrio e sexy.
“Walking after midnight”. Outra versão. Mais conhecida na voz de Patsy Cline, é um country pop, com pitadas de jazz. A marcha inexorável através de um mundo de solidão não para: ”I was walking after midnight. Yeah, out in the moonlight the way we used to do. I’m always walking after midnight. Searching for you.”
O álbum chega ao fim. Os Cowboys não fariam mais nada parecido com Trinity. Nem mesmo a versão revisitada, lançada em 2007, chega perto. A partir de então, eles enveredam por um caminho alt-country mais convencional que rendeu outros belos registros, mas nada como a magia deste álbum.
Existem certas coisas que só podem ser ditas pelo silêncio. Os Cowboy Junkies tentaram transformar a voz do silêncio em música. Por isso escolheram uma igreja para gravar. Quase conseguiram. “The Trinity Sessions” é essa tentativa.
Sergio de Souza, 10jun2013