A vagarosa pressa de Kevin Parker

Sergio de Souza
9 min readSep 4, 2020

--

Para variar, só consigo escrever sobre álbuns que me parecem grandes com algum distanciamento. Comecei a escrever essa resenha no dia 8 de março e terminei hoje: pressa vagarosa.

Em sua obsessão por pequenas peças pop sinfônicas, arranjos cheios de camadas, uso de todas as possibilidades do estúdio como instrumento, Kevin Parker pode ser, guardadas as devidas proporções, comparado com Paul McCartney ou Brian Wilson. A música pop atual precisava de um cara assim.

McCartney começou a exacerbar sua obsessão em “Rubber Soul” (muito embora em “Help” já aparecessem algumas sacadas), quando percebeu que podia aproveitar a genialidade de George Martin e a grana que possibilitava imensas temporadas em estúdio. Por exemplo, o quarteto de cordas em “Yesterday” foi ideia de Martim, que para convencer Paul, tocou-a em “estilo Bach”. Estavam obcecados com a ideia da canção pop perfeita. E tinham o estúdio, cordas, cítaras, cravos, pianos, sopros, e muita criatividade à disposição. O fruto? “Revolver”, “Sargeant Peppers”, “White Album” e “Abbey Road”.

Por outro lado, Brian Wilson levou a mesma obsessão a níveis estratosféricos. O que, junto ao uso de LSD, conduziu-o colapso mental, enquanto ia produzindo pérolas do quilate de “Today”, “Pet Sounds”(essa seu masterpiece, degraus acima das outras), “Smiley Smile”, “Surf’s Up” com o mesmo gosto por arranjos sofisticados e instrumentos exóticos (como o theremin em “Good Vibrations”). Se os Beatles tinham George Martin, os Beach Boys tinham Van Dyke Parks, tradutor das mais loucas ideias de Wilson em linguagem musical.

Kevin Parker padece da mesma obsessão, com o agravante de no Tame Impala fazer tudo praticamente sozinho. O estúdio é sua via e a tecnologia permite este caminho solitário. Toca todos os instrumentos. Pensa cuidadosamente em todos os detalhes de cada álbum. E escreve grandes canções. É um artesão à serviço da música pop. O Tame Impala é o nome que aparece na capa dos discos e a banda que o acompanha nos shows. Mas a música sai exclusivamente da cabeça, do coração e das mãos de Kevin Parker. O último gênio solitário da música pop. O cara que conseguiu colocar, em pleno 2020, o mundo inteiro na expectativa do lançamento de um disco (claro, que não contenha essas vulgaridades reinantes). Um disco de verdade. Planejado pacientemente para ser um disco. Como na época em que se ouvia música como se celebra um culto. Sim, isso é nostalgia mesmo. Parker já se disse viciado em nostalgia. E o Tame Impala já foi uma banda quase retrô. Aliás, a boa música quase sempre remete ao passado (sem deixar de olhar para o futuro)…

“The Slow Rush”, cujo título, algo como “A pressa vagarosa”, entrega a carta de intenções do disco, que tem como mote a meditação sobre a passagem do tempo. “Rush”, a pressa, seria o tempo que corre como um rio caudaloso, que passa arrastando tudo, levando pessoas, deixando para trás acontecimentos, freneticamente, sem permitir que paremos para observar o curso da vida… Ao mesmo tempo, Parker usa o “slow”, vagaroso, para dar esse sentimento contemplativo, para dizer que esse disco é um olhar examinado para o tempo, buscando significado nas coisas que acontecem, na morte do pai, no amor, nas dores, nas fugas…

“One more hour” já apresenta as características predominantes no álbum: sintetizadores sobrepostos, sonoridade climática, batida dançantes, psicodélico empoeirado… Longe de ter cara de hit, mas já mostrando que o tempo pós-Currents, no qual Parker trabalhou com Mark Ronson, Camila Cabello , Travis Scott, Kanye West e Lady Gaga, deixou marcas. Liricamente parece que há também uma carta de intenções, que indica uma revisão de vida: “mais uma hora”, mais um tempo, “passar um tempo sozinho” para ser “o homem que eu sou”:

As long as I can, long as I can
Spend some time alone
As long as I can, long as I can
Be the man I am

“Instant destiny” inaugura os candidatos a hit. Com a marca do pop oitentista (Prince, Michael Jackson…), coberta com camadas de sintetizadores, presença do psicodélico empoeirado de sempre, progressão da pegada de “Currents”. É uma canção de amor típica de alguém disposto a cometer a loucura de fugir, casar, morar em Miami e tatuar o nome de sua baby no braço. Encerra com uma saturação de sintetizadores sobrepostos e climão progressivo, e dá lugar a “Borderline”, outra que poderia ser hit, mais pop e eletrônica do que a anterior, com um refrão mântrico e de novo com os sintetizadores dominando o clima. O tema do tempo retorna:

Then I saw the time (saw the time)
Watched it speedin’ by like a train

No refrão, as dúvidas de quem vê o tempo passar e não sabe se tudo o que fez e recebeu foi o suficiente:

Will I be known and loved?
Is there one that I trust?
Starting to sober up
Has it been long enough?
Will I be known and loved?
Little closer, close enough
I’m a loser, loosen up
Set it free, must be tough

A belíssima “Posthumous forgivness” , uma balada cheia de intensidade, versa sobre, como diz o título, o perdão póstumo dado a um pai que achava que o filho não iria crescer e entender os rastro de besteiras que ele deixou (”Every single word you told me / I believed without a question, always / To save all of us, you told us both to trust / But now I know you only saved yourself”), e também sobre um filho que entende ( “Did you think I’d never know? Never wise-up as I grow), sofre, chora e , por fim, perdoa (em um retorno da canção após um break, como se fosse uma outra melodia, uma nova chance, sem o peso da lamentação anterior):

You were runnin’ for cover
Doin’ like any other
Fallin’ out with a lover
You didn’t know that I’d suffer
What a thing to discover
There was time to recover
Move on with each other
Just a boy and a father
What I’d give for another

Everything that I have
Couldn’t need this for long
Never speak of the time
That you left us alone
Me and Steve on our own
I wanna tell you ‘bout the time
Wanna tell you ‘bout my life
Wanna play you all my songs
Nonetheless, sing along

(This time) wanna tell you ‘bout the time
(I know) I was in Abbey Road
Or the time that I had
Mick Jagger on the phone
I thought of you when we spoke
Wanna tell you ‘bout the time
Wanna tell you ‘bout my life
Wanna play you all my songs
Hear your voice, sing along
I wanna say it’s alright
You’re just a man after all
And I know you have demons
I got some of my own
Think you passed ’em along
Wanna tell you ‘bout the time
Wanna tell you ‘bout my life
Wanna play you all my songs
And hear your voice sing along

“Breathe Deeper” traz de volta a dança e o popismo absoluto. Tem mais cara de hit ainda do que as anteriores. Alegrinha , repetitiva, redondinha, perfeita. Mas também tem seu momentinho synth-experimental no fim.

“Tomorrow’s Dust”, apresenta pela primeira vez o som nítido de guitarra (um violão) dedilhado em meio ao ritmo e às percussões, mas o falsete atmosférico de Kevin Parker não a deixa voar para climas distantes das outras canções. Aos poucos, a tecladaria vai entrando e coloca tudo no seu lugar. E, sim, também tem um momento synth. Engraçado que mesmo sendo “viciado em nostalgia”, Parker canta: “There’s no use trying to relate to that old song”.

“On track” é lenta e otimista:

“So tell everyone I’ll be alright
’Cause, strictly speaking, I’ve got my whole life
One other major setback
But strictly speaking, I’m still on track, yeah.”

“ The Slow Rush” tem um padrão. No futuro, acho que os fãs dirão: aquelas canções da fase “slow rush”... São catchy, groovy, mas também embaçadas, psicodélicas. Acho que esse disco guardará a memória de um tempo.

“Lost in Yesterday começa com um riff de baixo na cara e traz de volta o clima dancing hit. De novo retorna o tema do tempo. Parker escreve que memórias terríveis podem ser transformadas em grandes recordações. E ainda, se as memórias te chamarem, abrace-as; mas se quiserem te reter, apague-as. É preciso se perder no passado para aproveitar o que houve de significativo, mas também é preciso esquecer o passado para deixar passar o que é fugaz.

“Is It True” é puro Michael Jackson (uma das grandes e explícitas influências). A letra lida com o receio em manter promessas diante da precariedade do amor:

And I tell her I’m in love with her
But how can I know that I’ll always be?

She just said: Is it true? Is it true? Tell me now
It’s a promise I can’t make and I won’t validate

“It might be time” é a que mostra mais claramente a influência do Supertramp, nos pianos “martelados”. Kevin Parker disse, numa entrevista sobre o álbum: “I love those Supertramp melodies, those ’70s prog, emotional things.” As canções deste disco têm muito dessa mix de soft rock com progressivo, típica da banda de Roger Hodgson (mas esqueça se acha que vai encontrar traços óbvios: são climas, detalhes, ecos…). Na letra, a transitoriedade das coisas dá as caras novamente:

I’ve been lost before
So tell me it’s not over
Cuz I finally got something going, and suddenly
All my friends are growing up, and moving on
I must be missing something
Cuz I just wanna keep this dream alive for now
Don’t they know?
Nothin’ lasts forever

É dessa consciência da fugacidade de tudo que Parker acaba chegando à conclusão que dá nome a esta bela canção:

It might be time to face it

Glimmer” é um exercício de estética oitentista/noventista (da maravilhosa transição musical de uma década para outra). Há uma ambiência house. O Tame Impala e o Daft Punk são os grandes recicladores do bem dos últimos anos. Reciclam uma estética sem clima retrô. Causam nostalgia mas não são exatamente nostálgicos. Kevin Parker neste disco soa como o grande redentor dos santos synths. E a guitarrinha é matadora.

O canto do cisne é “One more year” começa dizendo: “Você se lembra que estivemos aqui há um ano?”. Kevin Parker não sabia que 2020 estava começando e o que ele iria nos reservar… Que reminiscências esse verso irá provocar em fevereiro de 2021 (“The Slow Rush” foi lançado em fevereiro deste ano) ? Como será 2021? Como será o futuro inteiro, tendo 2020 em perspectiva?

Toda a letra de “One More Year” guarda uma intenção de capturar o tempo, de recomeçar, de tentar retomar as rédeas da vida que, por conta da alienação causada pelo isolamento em uma relação que se tornou uma espécie de “montanha russa presa num eterno looping”…

A primeira estrofe é belíssima:

Do you remember? We were standing here a year ago
Our minds were racin’, time went slow
If there was trouble in the world, we didn’t know
If we had a care, it didn’t show

But now I worry our horizons bear nothing new
’Cause I get this feeling and maybe you get it too
We’re on a roller coaster stuck on its loop-de-loop

Especialmente o verso:

’Cause what we did, one day on a whim, will slowly become all we do

No fim das contas, a esperança de redenção reside no tempo, na expectativa de que “mais um ano” (repito: em fevereiro, 2020 ainda não havia começado) traga a cura das feridas, do tédio, e a libertação da prisão emocional:

But it’s okay
I think there’s a way
Why don’t we just say, “One more year”?

(…)

We got a whole year
(One more year) fifty-two weeks, seven days each
(One more year) four seasons, one reason
One way, one year
(One more year) one year, one year
From today

Musicalmente, “One More Year” encerra o disco cheia de ecos, cordas e uma guitarra repetitiva cheia de phaser. E os onipresentes sintetizadores apontando para todos os lados.

--

--

Sergio de Souza
Sergio de Souza

Written by Sergio de Souza

Trabalho com produção de conteúdo textual. Brinco de traduzir The Red Hand Files.

No responses yet