A lúcida loucura de Arnaldo Baptista
Uma breve reflexão escrita em 2014 sobre uma obra-prima da música brasileira
Alguns discos nascem de viagens. E algumas viagens não têm volta. Brian Wilson, Syd Barrett e Roky Erickson que o digam. Até o último dia do ano passado eu não conhecia “Singin’ Alone” (embora conhecesse “Loki?” de cabo a rabo), quando meu amigo Rafael Guedes postou o vídeo de “Qualquer bobagem” de Tom Zé no Facebook. De “Qualquer bobagem” procurei canções antigas e nostálgicas de Caetano e dos Mutantes até minha conversa com meu amigo desembocar em Arnaldo Baptista e seu “Singin’ Alone”. Ele falou em Leonard Cohen, Lou Reed. Fui ouvir o disco. Arnaldo, após um desmanche com Rita Lee, passou por uma crise, uma bad trip que culminou com uma queda do terceiro andar de um hospital psiquiátrico. Um episódio rodeado de mistério, dor, coma, proximidade da morte. No meio dessa jornada ao lado escuro da vida surge “Singin’ Alone”.
A primeira canção do álbum, “I fell in love one day”, marca quem cresceu escutando “Loki?”. O registro vocal grave, o clima soturno. O desbunde dá lugar à tristeza. Cohen, Reed. Começo a compreender. Arnaldo está lutando para sobreviver neste mundo sem Deus. E não é fácil. É um caminho obscuro.Está tudo explícito aqui. As ilusões estão perdidas, o sonho acabou.
“O Sol” parece algo derivado de uma viagem de ácido. Uma letra enigmática. A loucura. O cerne da obra de Arnaldo foi dar explicação para um fato que o obcecava: todo mundo pensava que ele era louco. Perdido entre dar razão às pessoas e tentar demonstrar que estavam erradas (e parecer mais louco ainda), algumas de suas canções mais contundentes tratavam diretamente do tema: “Cê tá pensando que eu sou lóki?” (cujo título é auto-explicativo) e “Balada do Louco”. “O Sol” é mais uma que dá razão aos acusadores: “eu quero ver o pôr do sol”. Sunshine é uma das palavras-chave do movimento hippie. Sunshine é uma gíria para LSD. Mas esta não é uma canção ensolarada. É sombria e triste.
“Bomba H sobre São Paulo” é um exercício de imaginação. Outra viagem de Arnaldo, onde ele imagina os efeitos de uma bomba atômica sobre a cidade de São Paulo. Ou seria a metáfora de um encontro face a face com a morte? No início da canção, ouve-se uma percussão que nos remete imediatamente a “The piper at the gates of dawn”. Mas depois a melodia caminha para o que nos acostumamos a chamar de música de seresta. Syd Barrett com seresta. Um dos achados do ex-mutante.
Ontem tinha um crente no rádio pedindo ao Senhor que “tirasse toda a angústia”. Mas é na angústia que se reza melhor. “Jesus come back to Earth” é uma oração agônica. Ainda não se tinha escrito uma canção pop assim no Brasil. “Loki?” e “Singin’Alone” têm uma densidade humana, como indicou o Rafael, que remete a Lou Reed ou a Leonard Cohen. São duas obras-primas viscerais que fotografam um gênio no fundo do poço emocional”, explicou-me meu amigo. John Lennon (“Plastic Ono Band” talvez seja o disco mais triste de todos os tempos), Kevin Ayers, Daniel Johnston, Elliott Smith, o Renato Russo de “A Tempestade ou O Livro dos Dias”, Vic Chesnutt e Nick Drake são nomes que vêm à baila, pelos mais diversos motivos, enquanto escuto “Singin’ Alone”. Arnaldo é dessa(s) escolas(s). Tenho meus motivos para lembrá-los: conheceram o wild side e voltaram para contar. Alguns contaram e se foram para sempre. Dizem que não se pode rezar por suas almas. Mas eu insisto: rezo. Por Kurt Cobain rezo, mas quase não me lembro mais dele. Porque nunca mais consegui escutar Nirvana.
A relação de Arnaldo com o transcendente é singular. Sua espiritualidade parece não conduzi-lo para um além, mas o mergulha num estado onde convivem a cosmovisão “alternativa” (naturebismo, on the road lifestyle) e certa obsessão com a tecnologia (amplificadores valvulados, guitarras Gibson, waves of science). Suas paixões, — a maior, naquele tempo: Rita Lee — e seu mergulho nos paraísos artificiais, parecem tê-lo feito prisioneiro de si mesmo (em “Desculpe”, de “Loki?” prenunciava: “Desculpe, mas vou me fechar…”). Mistura Deus consigo mesmo, Deus com baby, baby com dinheiro, baby com arco-íris, baby consigo mesmo. Quer um trem (“Train”) que o leve de volta, mas não tem para onde ir. É um andarilho, um caroneiro, um mochileiro das galáxias. Um cowboy intergaláctico. Mas seu universo é seu próprio sistema. Combateu na imanência e buscou em si mesmo a saída que lhe desse algum alívio… Conseguiu?
Arnaldo apresenta a perplexidade de quem caiu, levantou, mas não conseguiu mais sair de si. O cara que vive esperando um disco voador (outra de suas obsessões: ovnis), na esperança de que ele o faça viajar para o além, para sair de seu sufocante inner self.
“Singin’ Alone” é um marco na música brasileira. Primeiro disco da mítica gravadora indie Baratos Afins, de Luiz Calanca, que foi resgatar Arnaldo do fundo do poço. Disco de um gênio, que fez tudo sozinho. Tocou todos os instrumentos, compôs e cantou. Não é tarefa para qualquer um. Arnaldo foi buscar inspiração em outro gênio: Paul McCartney, que assim fez em seus primeiros álbuns solo. No Brasil quase ninguém havia feito isso. “Singin’ Alone” é o disco de um homem ressuscitado, carregando a morte nas costas. São as semanas astrais de um mutante que passou por um inferno astral. E voltou. E continua entre nós.