A inviabilidade da experiência humana

Sergio de Souza
4 min readSep 10, 2020

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Impressões sobre “O Diário da Queda”, de Michel Laub, escritas em 2011

1.A humanidade não tem jeito. Auschwitz é prova disso. É por isso que tenho mais medo de gente do que de cachorros, onças, lobisomens ou espíritos do além. O homem é um caso perdido. Nenhum homem é bom. Os dragões não conhecem o paraíso. ‘So Eden sank to grief ‘( ‘Nothing gold can stay’, Robert Frost). O Jardineiro foi embora. O homem é um amálgama de traumas, feridas e memórias dolorosas. O narrador anônimo do Diário da Queda de Michel Laub não me deixa mentir.

2. Não quero falar sobre judaísmo, narrativas fragmentadas, personagens sem nome, escrita autobiográfica. Nunca li Primo Levi. Mas o romance de Laub pegou-me na veia. Fez-me lembrar da infância, da velha escola, bullying, meu pai e meu avô. Meu avô que não esteve em Auschwitz, nem escreveu diários, mas passou seus últimos anos paralisado sobre uma cama, vivendo uma terrível noite escura da alma, vítima de um AVC e de Parkinson. Todos têm sua Auschwitz personalizada. Auschwitz é quando um homem da estatura de Joseph Ratzinger, ao visitar o local (a Auschwitz real, numa visita apostólica), treme nas bases e questiona: “onde estavas tu, Senhor, naqueles dias…” Mas não, não quero falar sobre Auschwitz.

3. Quero falar somente sobre as sombras (negrumes que iluminam a alma humana) que ficaram em mim após a leitura do Diário. Laub tocou no ponto certo (no que se perdem alguns bons autores brasileiros, com seus regionalismos excessivos): falou de sua aldeia, falou do mundo inteiro. A dor em que a humanidade está chafurdada é a mesma. “Auschwitzes” particulares mergulhadas numa grande Auschwitz cósmica. Não importa tanto que a escrita seja autobiográfica (como não seria?); importa que o autor provoque uma leitura autobiográfica. Isso Laub o fez com habilidade.

4. É o sofrimento que constrói o mundo. O Diário tem um quê de romance de formação. Formação, de acordo com o filósofo Luiz Felipe Pondé, é “a preparação para o enfrentamento da condição humana em si mesma. (…) Formar-se é encontrar a humanidade em nossa alma: coração e intelecto em agonia reparadora, como diriam muitos pensadores cristãos ortodoxos antigos” (Pequeno ensaio sobre a devastação, Revista Dicta & Contradicta nº4). O protagonista anônimo de Laub vai tropeçando numa espiral descendente que o conduz a um estado de naufrágio existencial sufocante onde não há escapatória, a não ser chegar à conclusão da “inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares”.

5. Mas há sempre frestas por onde entra a luz. Há santos. O livre-arbítrio é uma arma letal contra o destino desgraçado. As feridas marcam, mas não definem. E é da consciência da queda que nasce o olhar para o alto. Lembro-me de um comentário de Caetano Veloso sobre La strada de Fellini: o personagem de Antony Quinn passa toda a trama sem olhar para o céu e na cena final, após uma sucessão de desgraças, ergue o olhar. Gesto simbólico, redentor.

6. Não, não acredito na inviabilidade da experiência humana.

7. Também não acredito no homem, e muito menos em mim mesmo. Mas creio na Graça. A Graça misteriosa e escondida. A Graça que tem o poder de contrariar a tragicidade do destino. Graça que pode vir transfigurada na figuras femininas de uma Sônia, de “Crime e Castigo”, de Dostoievski ou até mesmo na Luiza, do livro de Karleno Bocarro, “As almas que se quebram no chão”. Ou no nascimento de uma criança. Um filho é uma graça nascente que redime. Laub inverte, ou distorce, a máxima machadiana de Brás Cubas (“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”). Aqui é o filho que, em vez de ser um herdeiro almadiçoado, arranca da miséria… Creio na Graça que pressupõe a natureza e salva o homem de si mesmo.

8. O Jardineiro foi embora. E continua presente. Nós é que estamos cegos. Como fantasmas num labirinto.

9. Esta não é uma resenha, são simples notas, impressões. Algumas coisas que sei sobre o que ficou na minha alma após a leitura do livro de Laub. Existem muitas outras resenhas, outros textos sobre o livro, melhores e mais completos que este. Neste fala mais a alma do que o livro. Procurem os outros.

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Sergio de Souza
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Written by Sergio de Souza

Trabalho com produção de conteúdo textual. Brinco de traduzir The Red Hand Files.

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