A amarga doçura de Carole e Joni

Sergio de Souza
4 min readDec 27, 2018

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Joni Mitchell no Festival da Ilha de Wight

Carole King e Joni Mitchell são cantoras incomuns. A peculiaridade de seus timbres vocais pode causar estranheza. A mim causa, cada vez que as ouço. King é, a seu modo, rouca e bluesy. Micthell possui um registro mais agudo, apelando ocasionalmente ao falsete. King é a típica compositora bittersweet dos anos setenta. Seu pop, marcado pelo blues e pelo folk, é capaz de grande popularidade. Mitchell é sofisticada e jazzística. James Taylor é o elo de ligação entre as duas. Tocou e participou de “Tapestry” e “Blue”, seus álbuns mais importantes.

De “Tapestry” jorram pérolas pop como “It´s too late” e “So far away” e o hino riponga”You’ve got a friend”. Já de “Blue” saem peças mais sombrias como “A case of you” (regravada por gente do calibre de Diana Krall e James Blake) e canções como “River” (que não resisto a colocar no repeat a cada Natal…). Ou a gravidade da faixa título.

Se “Tapestry” é superficialmente pop, “Blue” é cheio de cicatrizes profundas. Joni Mitchell não está brincando:“Ácido, bebidas e bundas. Agulhas, armas e a grama. Milhares de risadas, milhares de risadas. Todo mundo está dizendo: ‘ir para o inferno é o que há.’ Mas eu acho que não. Ainda que eu vá até lá, só para olhar”, canta em “Blue”, a canção.

“Blue” é um tratado cheio de confissões veladas. “Little Green”, onde Mitchell traça uma narrativa de múltiplas interpretações, seria, na verdade, sobre a filha que a cantora teve aos 21 anos e entregou para a adoção por não reunir as condições necessárias para criá-la. Fato que só foi revelado em 1988, dezessete anos após o lançamento do álbum. “Nascida com a lua em câncer. Escolha para ela um nome ao qual responderá. (…) Então você assina todos os papéis no nome da família. Você está triste e sente muito, mas não está envergonhada”, reza a letra.

Empunhando violão, piano e um instrumento chamado “appalachian dulcimer”, com o auxílio de Taylor e Stephen Stills no baixo, nos violões e guitarras, Mitchell criou um álbum melódica e harmonicamente sofisticado, com estruturas jazzísticas — influência de Miles Davis — mescladas a simplicidade folk e arranjos surpreendentemente simples. Piano, violão e o dulcimer. E eventualmente a presença da bateria.

Carole King durante a gravação de “Tapestry”

James Taylor tocou violão e foi o produtor de “Tapestry”. Joni Mitchell também aparece nos backing vocals. É um dos grandes capitaneadores do folk agridoce que explodiu no mundo pop dos anos 70. Carole King foi a grande musa do movimento. Se antes era somente a compositora de grandes hits ao lado de seu então esposo Gerry Goffin (Johnny Marr certa vez confessou que um de seus grandes sonhos era o de que ele e Morrissey pudessem ser um dia uma dupla como Goffin & King), agora é ela quem canta. Taylor foi quem a convenceu de que poderia dar voz às suas próprias composições. O fruto mais saboroso dessa parceria foi “Tapestry”, um sonho pop, um álbum completo, permeado pela perfeição das melodias, conduzido pelo piano e pela voz quase errática de King.

“You make me feel (like a natural woman)”, é o baladão soul-pianístico imortalizada por Aretha Franklin . “Beautiful” é uma beatle song. “Home again” é a típica canção de King. Simples e bela. Piano, violão, bateria, baixo e a voz: que voz! Imperfeita e intensa. “I feel the earth move” é a mais rock’n’roll do disco, mas, ainda sim, é doce. “It’s too late” é a perfeição pop, ao lado de “So far away”. “Smackwater Jack” é um blues. “Tapestry” é tão linda e derramada — digna de ser mencionada ao lado das maiores baladas de todos os tempos. King canta com o coração na garganta. “Way over younder” é uma balada bluesy. King com a voz no talo outra vez. “Where you lead” é outra com o pé no blues. “Will you love me tomorrow” é um lamento feminino sobre a insegurança do amor, que pode acabar numa esquina. E tem “You’ve got a friend” que é… Bem, “You’ve go ta friend” é “You’ve got a friend”. É o óbvio, o brega. Mas o brega de Carole King…

Se com “Blue” os termos a serem usados são sombras, confissões e cicatrizes, em “Tapestry” se repetem expressões como pop e perfeição. Se tivemos que usar os termos errático e imperfeito foi para caracterizar a voz de King. No entanto, James Taylor foi visionário ao incentivá-la a cantar. O pop perfeito que transborda de um coração e de uma voz castigada. Se o Jesus and Mary Chain soterrava perfect pop songs sob avalanches de distorção, King as entoa com a distorção natural de sua voz de menina sofrida. O pop de King é doce e perfeito, mas, paradoxalmente, também é amargo. Como a vida. A alegria e a tristeza de mãos dadas. A perfeição e o pecado até o último momento. Assim é “Tapestry”. Como a vida.

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Sergio de Souza
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Written by Sergio de Souza

Trabalho com produção de conteúdo textual. Brinco de traduzir The Red Hand Files.

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